terça-feira, 2 de setembro de 2014

09 - Processo de Conhecimento - Recursos - Teoria Geral I


II - Dos Recursos

1) Conceito

Recurso é o meio pelo qual se impugna uma decisão judicial dentro de uma mesma relação processual.

Esse conceito, normalmente referido pela doutrina, tem um significado importante, pois esclarece que os recursos são apenas um dos meios pelos quais se pode impugnar uma decisão judicial. Assim, embora não seja o único meio, tem ele a peculiaridade de estabelecer um questionamento da decisão dentro da mesma relação processual.


2) Natureza Jurídica

A doutrina discute a natureza jurídica dos recursos. Diante de um determinado ponto de vista, o recurso teria a natureza jurídica de ação, tomando-se por referência o fato de que o recurso depende de uma iniciativa voluntária da parte, assim como um pedido, uma causa de pedir (ou fundamento jurídico), etc. 

Todavia, existe uma controvérsia. Autores como Didier e Scarpinella entendem que seria equivocado atribuir ao recurso a natureza jurídica de ação, sobretudo porque aquele que recorre se utiliza da mesma relação jurídica processual, sem qualquer necessidade de constituir outra à parte. Essa crítica é bem aceita pela maioria da doutrina, que acaba entendendo que a natureza jurídica do recurso é a de ser uma extensão do direito de ação das partes, sem configurar um novo direito de ação dentro da própria ação. 


3) Fundamentos do Recurso

No campo doutrinário se costuma dizer que os recursos têm como fundamento jurídico o princípio do duplo grau de jurisdição. Como se sabe, esse princípio é aquele que confere às partes a possibilidade de buscar a revisão de uma decisão judicial que as atinja junto a um outro juízo ou instância. 

Este princípio não se encontra expresso na CF/88, sendo, por isto, contestado ainda por certos setores da doutrina. O fato, porém, é que o texto da Constituição traz este princípio de modo implícito à medida em que organiza o Poder Judiciário estabelecendo juízos e Tribunais Superiores, que só faz sentido com a admissão do duplo grau. 

Alguns afirmam, ainda, que este princípio deriva da necessidade de que as decisões judiciais sejam as mais adequadas e perfeitas possível para o caso concreto. Assim, o duplo grau teria a finalidade de permitir o aperfeiçoamento das decisões judiciais de um modo geral. 


4) Finalidades do Recurso

O recurso propicia à parte recorrente o alcance de alguns objetivos possíveis. Assim, levando-se em conta que o objetivo maior é o estabelecimento de um controle das decisões e também de seu aperfeiçoamento, será possível vislumbrar os objetivos seguintes:
  • Inicialmente, a revisão do julgado é o objetivo da parte que aponta, na decisão, um error in judicando, ou seja, um equívoco técnico na interpretação e aplicação da lei;
  • Todavia, há também a possibilidade de que o recorrente pretenda a invalidade da decisão, situação que ocorre quando ela aponta um error im procedendo, isto é, quando a parte enxerga um vício no processo ou na própria sentença;
  • Igualmente, pode ainda, a parte, pretender o esclarecimento ou a integração da decisão. Pretenderá ela o esclarecimento quando o ato decisório apresentar contradições em sua fundamentação, ou incoerências e obscuridades, além de contradições. Ao contrário, buscará a integração da decisão na hipótese de omissão do Judiciário, quando não tenha ele deliberado sobre uma pretensão posta pela parte.

5) Princípios dos Recursos

A disciplina dos recursos compreende alguns princípios considerados essenciais à matéria. A doutrina traz normalmente uma série de princípios, entre os quais estão alguns considerados indiscutíveis, por serem produto da opinião unânime dos processualistas.


5.1) Taxatividade

Trata-se de um princípio que enuncia a limitação das hipóteses ou espécies de recurso àquelas especificamente descritas na lei. Em outras palavras, não é possível, ao menos em princípio, a interposição de recursos sobre os quais inexista previsão legal. Assim, quando o art. 496 lista diversas espécies de recursos, deve-se entender a inexistência de quaisquer outras ali não referidas (salvo as hipóteses de leis especiais). 


5.2) Correspondência

Para cada hipótese de decisão judicial corresponderá um recurso adequado. Tomando-se por base o art. 162, chega-se à conclusão de que as decisões interlocutórias apenas admitem recursos de agravo, enquanto que sentenças comportarão tão somente recurso de apelação, inexistindo recurso para a hipótese de despacho, conforme art. 504.


5.3) Unicidade

Ou unirrecorribilidade, trata-se de princípio segundo o qual a parte prejudicada só pode interpor um único recurso da decisão que afetou sua esfera jurídica. Visto de outro modo, a parte que sucumbe há de escolher um único recurso adequado para o ataque da decisão. 

Existe, todavia, uma situação que se poderia caracterizar como hipótese de exceção: é o caso da interposição simultânea de RE e REsp em face de acórdãos que os permitam.


5.4) Fungibilidade

O princípio da fungibilidade dos recursos é aquele que, em nome da garantia de acesso à Justiça, permite aos Tribunais a admissão de um recurso por outro. Como se observa, é uma clara hipótese de exceção ao princípio da correspondência. Para que se viabilize o recebimento de um recurso por outro, todavia, é necessário que se observe dois requisitos, ou seja:

a) A inexistência de erro crasso;

b) A adequada observância dos prazos.

Dessa maneira, não se cogita da fungibilidade se a interposição do recurso equivocado teve por causa um erro grosseiro. Assim também não será o caso se o prazo previsto para o recurso adequado já estiver ultrapassado no momento da interposição. 


5.5) Proibição da Reformatio in Pejus

Segundo este princípio, não se permite ao Tribunal o julgamento do recurso que estabeleça uma piora da situação jurídica definida pela sentença ou pela decisão em prol do recorrente. A ideia central deste princípio é a de que aquele que recorre o faz em busca de uma melhora de sua situação jurídica, não sendo plausível que sua iniciativa leve a uma solução contrária a seus direitos já reconhecidos na sentença.


6) Procedimento Recursal

A interposição de recurso inaugura um procedimento novo dentro da mesma relação processual. Pode-se dizer que esse procedimento se desenvolve em duas etapas. É claro que o que se deseja com a interposição de um recurso é o alcance do conhecimento e deliberação da matéria levada ao tribunal competente. Para que se chegue a isto, todavia, é indispensável que aquele que recorra tenha o direito de fazê-lo, e que o tenha exercido na forma indicada pela lei (admissibilidade). Apenas após a verificação desses pontos é que a corte competente realizará o julgamento do mérito do recurso.


6.1) Juízo de Admissibilidade

Essa etapa do procedimento recursal é desenvolvida inicialmente, e em regra, perante o juízo de origem, ao qual caberá o juízo provisório de admissibilidade do recurso. Fala-se em juízo provisório do juízo a quo, porque a apreciação definitiva da admissibilidade será procedida pelo juízo ad quem. O objeto do juízo de admissibilidade se dirige à apreciação dos requisitos para a interposição dos recursos, que são classificados como intrínsecos e extrínsecos. O ponto de referência para esta classificação é o próprio direito de recorrer;

a) Requisitos intrínsecos: são aqueles próprios e essenciais ao direito de recorrer. São requisitos dos quais depende a própria existência do direito de recorrer. A doutrina constata a existência de quatro requisitos intrínsecos para a interposição dos recursos. São eles:
  • Cabimento: estará preenchido sempre que o recurso interposto pela parte corresponder exatamente à modalidade de decisão judicial atacada. Como se viu antes, na apreciação do princípio da correspondência, cada espécie particular de ato decisório desafia uma modalidade também específica de recurso. Assim, uma decisão interlocutória só poderá ser impugnada por um agravo, ao passo que uma sentença desafia normalmente apelação;
  • Casos existem, todavia, em que esta lógica resta contrariada, mas em razão de circunstâncias muito particulares. Um exemplo típico é o trazido pela Lei nº 1.060/50 (assistência judiciária gratuita), na qual o legislador estabelece que a decisão que defere ou indefere o benefício será atacável por apelação. Apesar disto, a jurisprudência e a doutrina consagraram que o recurso adequado não é aquele previsto na lei, mas sim o agravo de instrumento, por ser evidente a natureza de decisão interlocutória; 
  • Outra situação similar é aquela prevista pelo art. 475-H, em que o legislador aponta o recurso de agravo de instrumento como adequado para as decisões finais sobre a liquidação de sentença. Ora, tecnicamente a decisão final na liquidação tem caráter indiscutível de sentença, devendo desafiar apelação. O sincretismo processual, todavia, levou o legislador a prever a hipótese do recurso de agravo;
  • Legitimidade para recorrer: este requisito é aquele que exige que a parte que interpõe um recurso tenha legitimidade, isto é, seja portadora de uma relação de pertinência para com o objeto do processo e do recurso. Como se sabe, em princípio, apenas aqueles que são partes no processo ou o MP é que tem legitimidade para recorrer. É preciso notar também que terceiros interessados igualmente obtêm da lei permissão para a interposição de recurso, desde que consigam demonstrar efetivamente sua legitimidade para tanto; 
  • Em uma ação de despejo, por exemplo, embora seja, o locatário, o réu, nada poderá impedir a interposição de recurso pelo sub-locatário, cuja legitimidade deriva do fato de que também será atingido pelos efeitos da decisão;
  • Interesse: esse requisito assegura que só podem ter acesso ao recurso aqueles que puderem ser atingidos pela decisão de modo negativo em relação à sua esfera jurídica. Em outras palavras, exige-se daquele que pretende recorrer a denominada "sucumbência". Somente aquele que não for atendido em sua pretensão tornou-se sucumbente, e bem assim passou a passe interesse na sua revisão. Por óbvio, a parte que foi inteiramente vencedora no litígio, tendo todas suas pretensões atendidas, não terá interesse em recorrer;
  • Inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer: exige-se de quem recorre a ausência de qualquer fator capaz de atingir o direito de recorrer, seja para impedir seu exercício, seja para extingui-lo. Exemplificativamente, cita-se o caso do art. 502 que explicitamente autoriza às partes a manifestarem sua renúncia ao direito de recorrer. Renunciar, como se sabe, significa abdicar de um direito, extinguindo-o por força de uma declaração de vontade. Por outro lado, o art. 503 faz alusão a uma hipótese em que a parte sucumbente toma atitudes absolutamente contrárias àquelas que seriam naturais ao inconformado com a decisão. É o caso, portanto, de uma espécie de renúncia tácita ao direito de recorrer. Ora, se alguém, inconformado com uma sentença que o obrigou a reparar danos morais por uma ofensa via internet se apresta a depositar imediatamente depois a quantia determinada na decisão em favor do autor, antes da execução, retirará com essa atitude a credibilidade da interposição de uma apelação a respeito.

b) Requisitos extrínsecos: são aqueles que dizem mais respeito à forma de exercício do direito de recorrer. Tratam-se daqueles requisitos que cuidam do modo do exercício do direito de recorrer. A doutrina aponta três requisitos dessa espécie:
  • Tempestividade: os recursos devem ser interpostos dentro do prazo legalmente previstos. É indispensável a previsão de prazo, pois o processo não pode aguardar por iniciativas tardias das partes que retardam seu bom andamento indefinidamente. Por isso, as partes ficam sempre sujeitas à preclusão. Assim dita o art. 473, já porque o processo é sempre uma marcha para frente. Os prazos recursais estão genericamente previstos no art. 508, no que diz respeito a recursos como a apelação, embargos infringentes, etc. 
  • A previsão legal desses prazos pode sofrer uma ampliação ou dilatação em situações específicas, nas quais a parte recorrente ostente uma certa condição. O exame do art. 188, por exemplo, permite ver que o prazo para recurso será sempre contado em dobro quando a parte recorrente for a Fazenda Pública ou o MP. Da mesma maneira, o art. 184 também abre espaço a situação similar. O importante, afinal, é que esses prazos são fatais, e a sua fluência se inicia nos termos do que dispõe o art. 506;
  • Regularidade formal: a lei exige forma para a interposição dos recursos. Em sua maior parte, os recursos devem ser interpostos por escrito, já acompanhados das razões, com endereçamento adequado, conforme dita, por exemplo, o art. 514 na hipótese de apelação. A regularidade formal, portanto, exige que a parte apresente razões específicas, próprias de um recurso. Assim, é importante que elas impugnem os elementos específicos da decisão, com a fundamentação adequada e o pedido exato de revisão;
  • Foge ao critério ou exigência da regularidade formal aquele recurso em que a parte se limite a uma referência às suas alegações finais; 
  • Quanto ao mais, a lei as vezes exige a solenidade das razões escritas, como acontece comumente, admitindo também, e por exceção, a manifestação verbal das razões em casos mais específicos, como o do agravo de decisão proferida em audiência;
  • Preparo: esse requisito vem apontado pela disposição do art. 511, e se refere à necessidade do recolhimento das custas e do porte de remessa do recurso como condição necessária.

c) Natureza da decisão que julga inadmissível o recurso no Tribunal: o professor Didier considera muito importante a natureza jurídica da decisão que julga a admissibilidade do recurso. A preocupação que ele manifesta decorre de uma discussão instalada na jurisprudência. 

Como se sabe, duas correntes existem sobre a matéria, uma delas entendendo que a decisão final do Tribunal sobre a admissibilidade tem caráter meramente declaratório, enquanto uma outra corrente defende a natureza constitutiva desta decisão. 

O problema se estabelece porque, sendo aceita a natureza declaratória, os efeitos dessa decisão serão retroativos à data da interposição do recurso, ou à data do esgotamento do prazo para tal, a partir de quando a sentença será então considerada como passada em julgado.

Ao contrário, se a natureza for constitutiva, como quer a segunda corrente, então os efeitos desta decisão serão ex nunc, o que indicará que o trânsito em julgado da sentença só acontecerá à partir deste momento. 

Qual a importância deste debate?

A importância está ligada à possibilidade de propositura da ação rescisória - art. 485, cujo prazo é de 2 anos. Essa informação é esclarecedora porque, caso se entenda que a decisão sobre a admissibilidade tem caráter declaratório, com efeitos retroativos, quando ela for tomada pelo Tribunal, pode ser que já não haja mais tempo para a rescisória. É bom lembrar que muitas vezes, entre a interposição do recurso em primeiro grau e o juízo de admissibilidade no segundo grau, medeia um período superior a 2 anos.

Portanto, parte da doutrina se bate na atualidade pelo caráter constitutivo da decisão de admissibilidade, porque, em razão disto, o trânsito em julgado da decisão questionada irá ocorrer apenas na data do juízo negativo de admissibilidade, abrindo oportunidade para a rescisória.


6.2) Juízo de Mérito

Uma vez decidida a admissibilidade, determina-se se tem fundamento, de maneira que se faltar algum requisito da admissibilidade, o recurso deve ser repelido, e se também sendo admissível, resulta improcedente, então tem que recusá-lo; mas se é manifestadamente infundado, também pode ser repelido. A própria prática judiciária também percebeu essa distinção, no entanto, ao contrário da doutrina, acabou atribuindo outras expressões. Usa-se das expressões ‘conhecer’ e ‘não conhecer’ para designar o juízo de admissibilidade, e ‘dar provimento’ e ‘negar provimento’ referindo-se ao juízo de mérito.

É óbvio que só se passa ao juízo de mérito se o de admissibilidade resultar positivo; de uma postulação inadmissível não há como nem porque investigar o fundamento.

a) Mérito da Demanda e Mérito Recursal

Mérito é, no processo de conhecimento, a pretensão, ou melhor, é retratado pela pretensão, deduzida pelo autor, a qual, a seu turno, espelha o bem jurídico sobre o qual se litiga, e, tal como o autor o tenha definido.

Ele coincide, às vezes, com o mérito do recurso, porém não têm o mesmo significado. Cândido Dinamarco, esclarecendo acerca do mérito da demanda, afirma que falhando todas as tentativas de determinação do conceito de mérito (relação litigiosa, lide) e não sendo ela coincidente com as questões de mérito, a indicação de pretensão tem sido vitoriosa em doutrina e é satisfatória.

Já no âmbito recursal, o mérito se relaciona, em geral, com o defeito da decisão alegado pelo recorrente.


b) O conteúdo do juízo de mérito recursal

Mérito, no plano recursal, não se confunde com o meritum causae. Ele expressa ideia similar, já que consiste no fundamento a ser analisado para decidir se vai prosperar ou não o recurso. São as alegações do recorrente, que geralmente estão ligadas ao defeito apresentado pela decisão. É a matéria devolvida ao órgão competente com a interposição do recurso. Certas matérias, pois, que, com relação ao processo globalmente considerado, são preliminares (matéria preliminar ao julgamento do mérito da causa), acabam ficando integradas no mérito do recurso. Isso acontece, porque, como visto, a pretensão devolvida ao Tribunal pelo recurso interposto não é invariavelmente a pretensão fundamental do processo.

O conteúdo do juízo de mérito recursal é, portanto, a matéria devolvida, através da interposição do recurso, visando, em regra, reformar ou anular a decisão. Há, entretanto, situação diversa no caso de embargos de declaração que, ao contrário, têm em vista esclarecê-la ou complementá-la.




Nenhum comentário:

Postar um comentário