sexta-feira, 19 de setembro de 2014

16 - Crimes contra o Patrimônio - Furto

Crimes contra o Patrimônio

1) Introdução

São os crimes cujo objeto jurídico é o patrimônio, ou seja, a universalidade de bens e interesses da pessoa. Existe controvérsia acerca da necessidade, para a configuração de um destes crimes, de lesão a um bem que possua valor econômico. Quanto a isso, existem duas correntes:

a) Só haverá crime se a coisa tiver valor econômico, pois sem isso não ocorre dano ao patrimônio (ex.: subtração de uma folha de cheque, ou de um retrato de família, ou de uma carta de amor, etc.). Para essa corrente, essas condutas configuram mero ilícito civil;

b) A proteção  ao patrimônio não tem em vista somente o valor econômico, mas de qualquer valor, como o valor afetivo, o valor utilitário, etc. Portanto, mesmo aqueles bens que não possuam valor econômico podem ser objeto material destes crimes.

2) Furto - CP, art. 155

Consiste em subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel.

2.1) Sujeito Ativo

Trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, exceto o proprietário do bem, já que a coisa deve ser alheia;
  • Aquele que já detém a coisa pode cometer furto dela? Se essa posse for vigiada, a subtração da coisa constituirá furto. Posse vigiada é aquela em que o agente não tem a autorização para levar o bem (ex.: comete furto o agente que recebe uma roupa para experimentar em uma loja e a leva na bolsa; aquele que recebe um livro para ler na biblioteca e o leva embora escondido, etc.);
  • Se a posse for desvigiada, ou seja, se o agente tem a autorização para levá-la consigo, e o faz, deixando de restituí-la, não há furto. Neste caso, se o dolo é antecedente à posse, o crime é estelionato. Se é subsequente, é apropriação indébita;
  • O ladrão que furta coisa furtada que está na posse outro ladrão comete crime, pois o agente subtrai coisa alheia móvel. A vítima da segunda subtração não será o ladrão que realizou a primeira subtração, mas o proprietário do bem, pois a segunda subtração distancia ainda mais o bem de seu dono.

2.2) Sujeito Passivo

Qualquer pessoa, que seja o proprietário do bem. Para a configuração do crime não é preciso que a vítima seja identificada, bastando a comprovação de que a coisa é alheia.


2.3) Tipo Objetivo

A conduta é subtrair, que significa desapossar, retirar a coisa da disponibilidade da vítima com ânimo de apossamento definitivo.

Como o patrimônio é disponível, eventual consentimento da vítima antes ou durante a subtração afasta o crime. No entanto, o consentimento posterior é irrelevante. 

Não se exige a clandestinidade, podendo o crime ser praticado tanto na presença como na ausência da vítima (ex.: subtrair a carteira do bolso da vítima).

O objeto material é a coisa alheia móvel. 

a) Coisa: são apenas os bens corpóreos. Os bens incorpóreos não são passíveis de subtração;
  • A pessoa humana não é coisa, e portanto não pode ser objeto de furto. Sua subtração pode configurar outros crimes, como sequestro - art. 148, extorsão mediante sequestro - art. 159, ou subtração de incapaz - art. 249;
  • O cadáver pode ser objeto de furto se estiver na posse de alguém, em circunstância na qual ele tenha valor econômico (ex.: o cadáver utilizado para estudo na faculdade de medicina). Fora dessas circunstâncias, a subtração do cadáver não configura furto, mas o crime contra o respeito aos mortos - art. 211;
b) Alheia: exige-se que a coisa tenha dono. Não há furto de res nullius (coisa que jamais teve dono), nem de res derelicta (coisa que foi abandonada pelo dono);
  • O ouro da arcada dentária do cadáver, os objetos que o guarnecem, etc., mesmo após o enterro, não são res derelicta, pois continuam pertencendo aos sucessores do morto. Portanto, podem ser objeto de furto, o qual absorve o crime de violação de sepultura do art. 210. No caso, a violação constituirá no rompimento de obstáculo que qualifica o furto;
c) Móvel: a palavra é supérflua, pois coisas não móveis não são passíveis de subtração;
  • Os móveis incluem os semoventes (coisas que têm movimento próprio, animais);
  • A árvore retirada do solo é bem móvel, e pode ser objeto de furto;
  • Coisa móvel por equiparação - §3º: a lei equipara à coisa móvel qualquer forma de energia que tenha valor econômico (ex.: energia elétrica, química, atômica, etc.). Assim, o chamado "gato" (ligação elétrica clandestina) constitui furto de energia;
  • O agente que coloca seu animal fêmea na propriedade do vizinho para que seja fecundada por um macho pratica furto de energia genética. Neste caso, o furto se consuma quando líquido espermático entra na fêmea, ainda que não haja fecundação, pois a energia está no esperma;
  • Quanto ao furto de sinal de TV a cabo:
  • Uma corrente sustenta que o sinal de TV a cabo é uma forma de energia, chamada de energia radiante, que possui valor econômico, razão pela qual pode ser objeto de furto, através de uma ligação clandestina; 
  • No entanto, segundo o STF, o sinal de TV a cabo não pode ser objeto material de furto, assim como os outros sinais de TV, de rádio, etc. Segundo este entendimento, isto se dá porque o sinal de TV a cabo, mais que seja utilizado, não sofre diminuição, não se gasta, não se consome. Assim, mesmo que todos os aparelhos de TV estivessem ligados ao mesmo tempo, haveria sinal para todos;

  • Furto de bagatela: é o furto de objeto de valor irrisório, como pro exemplo uma pasta de dente em um grande supermercado. Uma corrente, adotada inclusive pelo STF, entende que neste caso, por não haver lesão ao bem jurídico patrimônio, a conduta é atípica, por aplicação do princípio da insignificância. Valor irrisório é aquele desprezível, incapaz de produzir qualquer dano ao patrimônio da vítima. Ele não se confunde com o "pequeno valor", que configura o furto privilegiado, o qual, como veremos, pode chegar perto de um salário mínimo;
  • Furto famélico: é o furto de alimentos para saciar a fome. Não é crime em razão da excludente de ilicitude do estado de necessidade.

2.4) Tipo Subjetivo

É o dolo, consistente na vontade de subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel, com fim de tê-la definitivamente (animus rem sibi habendi, isto é, a vontade de ter a coisa para si). O dolo de furtar é o animus furandi;
  • Questão do furto de uso: trata-se do furto atípico por falta do animus rem sibi habendi. Ele se configura quando o agente subtrai a coisa apenas para o fim de utilizá-la momentaneamente, e em seguida a restitui integralmente, no mesmo local em em local próximo ao da subtração (ex.: o agente encontra uma bicicleta na rua, utiliza para um passeio e a devolve no local);
  • Se a coisa não for restituída no mesmo local ou próximo, mas for abandonada em local distante, ou se ela for restituída muito tempo após, ou ainda se ela for apreendida pela polícia, não há como sustentar que houve mero furto de uso.

2.5) Consumação

Existem quatro teorias sobre a consumação do furto:

a) Concretatio: basta que o agente toque na coisa;

b) Amotio ou apprehensio: o furto se consuma quando o agente pega a coisa, se apodera dela, ainda que por breve tempo, e sob vigilância;

c) Ablatio: o furto se consuma quando o agente desloca a coisa, retirando-a do local onde estava;

d) Ilatio: o crime se consuma quando o agente consegue colocar a coisa subtraída no local em que ele pretendia;
  • Durante décadas nossa jurisprudência, inclusive das cortes superiores, era no sentido de que o furto se consuma apenas quando o agente, após efetuar a subtração e se apoderar da coisa, consegue ter, ainda que por um curto período, a sua posse tranquila e desvigiada. Trata-se de uma corrente intermediária entre a ablatio e a ilatio;
  • Mais recentemente, essa jurisprudência foi alterada, e hoje predomina amplamente, inclusive nas corte superiores, o entendimento de que o furto se consuma no momento em que o agente se apodera da coisa, retirando-a da disponibilidade da vítima, mesmo que ele não consiga ter a sua posse tranquila e desvigiada. É a adoção da teoria da amotio ou apprehensio;
  • Suponha-se que o agente subtraia a carteira da vítima e corra por alguns metros, sendo perseguido e preso na posse da carteira. A corrente que antes preponderava, afirma que ele deve responder por tentativa, pois em nenhum momento teve a posse tranquila e desvigiada da coisa. Para a corrente que hoje prepondera, ele responde por furto consumado, pois ele chegou a se apossar do bem, retirando-o da disponibilidade da vítima. Para essa corrente, só haverá tentativa se o agente não conseguir a posse do bem (ex.: ele coloca a mão no bolso da vítima, toca na carteira, mas a vítima o agarra antes que ele se aposse do bem). Qualquer que seja a corrente, não há dúvida de que se o bem ou parte dele não for recuperada, o bem estará consumado.
(Promotor MP/BA 2015) No que diz respeito ao momento da consumação do crime de furto, o Supremo Tribunal Federal adota a corrente da amotio, segundo a qual o furto se mostra consumado quando a coisa subtraída passa para o poder do agente, mesmo que em curto lapso temporal, independentemente de deslocamento ou posse mansa e pacífica. (CERTO)

(Juiz TJ/ES 2012 CESPE) Adota-se, em relação à consumação do crime de roubo, a teoria da apprehensio, também denominada amotio, segundo a qual é considerado consumado o delito no momento em que o agente obtém a posse da res furtiva, ainda que não seja de forma mansa e pacífica. (CERTO)

2.6) Furto Qualificado - §§ 4º e 5º

a) Destruição ou rompimento de obstáculo à Subtração da Coisa - §4º, I
  • Destruir é desfazer, aniquilar o obstáculo (ex.: explodir um cofre);
  • Romper é danificar, estragar o obstáculo sem destruí-lo (ex.: quebrar uma corrente, arrombar uma porta, etc.);
  • A mera remoção do obstáculo sem destruição nem rompimento não configura a qualificadora (ex.: remover telhas, ou desparafusar a grade da janela, etc.). Como o crime, necessariamente, deixa vestígios, a prova da qualificadora exige exame de corpo de delito, cf. CPP, art. 167;
  • Discute-se se o obstáculo à remoção da coisa pode estar na própria coisa ou deve ser exterior a ela:
  • Prevalece no STJ que só prevalece a qualificadora se o obstáculo for diferente da própria coisa subtraída, ou seja, exterior a ela. Para essa corrente, por exemplo, se o agente quebrar o vidro para subtrair o automóvel, a qualificadora não incidirá, pois o vidro faz parte da própria coisa subtraída. No entanto, se ele quebrar o vidro para subtrair um objeto deixado no interior do carro, a qualificadora incidirá;
  • Para a corrente minoritária, obstáculo é qualquer coisa que dificulte a subtração, seja interior seja exterior à própria coisa. Para essa corrente, o vidro dificulta tanto a subtração dos bens que estão dentro do carro quanto do próprio carro, e em qualquer das hipóteses o furto seria qualificado.
b) Abuso de confiança, fraude, escalada ou destreza - §4º, II;
  • Abuso de confiança - para a configuração desta qualificadora são necessários dois requisitos: 
  • Relação de confiança entre o agente e a vítima. A jurisprudência tem entendido que a mera relação empregatícia não basta para configurar a confiança, sendo necessários outros elementos que a demonstrem (ex.: a patroa confia a chave da casa à empregada -isto sim configura a confiança). O furto praticado por empregado é chamado de famulato; 
  • O agente deve praticar a infração valendo-se de uma facilidade proporcionada por essa confiança. Deve haver uma relação de causa e efeito entre a confiança que a vítima depositava no agente e o furto por ele praticado (ex.: empregada usa chave para entrar na casa sabendo que os patrões estão viajando);
  • Fraude: é o meio enganoso utilizado pelo autor do furto para distrair a vigilância da vítima e permitir a subtração (ex.: o agente mente à vítima dizendo que ela está sendo chamada com urgência em outro lugar e quando ela sai tem subtraído seu relógio; um agente simula interesse em comprar uma mercadoria na loja para distrair o vendedor enquanto outro furta);
  • Diferença entre furto mediante fraude e estelionato: no furto mediante fraude, o agente subtrai a coisa contra a vontade da vítima, cuja vigilância é afastada pela fraude; no estelionato não há subtração, mas a própria vítima ludibriada entrega a coisa ao agente (ex.: o agente comparece a um estacionamento e faz o manobrista acreditar que é o dono de um carro ali estacionado, diante do que o manobrista entrega o veículo); 
  • No chamado "golpe do test drive", em que o agente comparece a uma loja de automóveis e simula o interesse em testar o carro para levá-lo embora, a hipótese configura estelionato. No entanto, há alguns julgados que, nesse caso, como também no exemplo do estacionamento, tem tratado a hipótese como se fosse furto mediante fraude apenas para permitir que a vítima receba o valor do seguro, pois este cobre apenas furto e roubo, e não estelionato;
  • Escalada: é o ingresso no local onde está o bem de modo anormal, seja através do uso de instrumento (ex.: escada, corda, pá, etc.), seja através de um esforço incomum (ex.: subir em árvore, galgar o muro ou a janela, etc.). Escalada não é apenas o subir em alturas, mas qualquer meio anormal de ingresso (ex.: cavar túnel é escalada). Quando a escalada consiste em galgar uma altura, a jurisprudência exige que esta tenha pelo menos 1,80m (STJ);
  • Destreza: é uma habilidade especial de subtrair coisas que estão em poder da vítima, sem que ela se aperceba (ex.: punga - punguista é o batedor de carteira);
  • Quanto à tentativa de furto qualificada pela destreza, é preciso distinguir: 
  • Se a própria vítima percebe a ação do agente e impede a consumação, este responde por tentativa de furto simples. Como a vítima se apercebeu da conduta do agente, isto significa que não houve destreza; 
  • Se a ação do agente é percebida por um terceiro que impede a consumação, e não pela própria vítima, ele responde por tentativa de furto qualificada pela destreza.
c) Emprego de chave falsa - §4º, III;

  • Chave é qualquer instrumento capaz de abrir uma fechadura, tenha ou não o formato de chave (ex.: chave de fenda, grampo, mixa, etc.);
  • A chave verdadeira obtida ilicitamente não é chave falsa e portanto não qualifica o furto (ex.: o agente subtrai o chaveiro da vítima e furta seu carro);
  • A cópia clandestina da chave verdadeira não é a chave verdadeira. Portanto, é chave falsa, e qualifica o furto (ex.: empregado subtrai a chave da loja, leva a um chaveiro, faz uma cópia e restitui a chave original, utilizando mais tarde a cópia para furtar;
  • A ligação direta em veículos não configura emprego de chave, e portanto não incide essa qualificadora;

d) Concurso de pessoas - §4º, IV


  • Exige-se o concurso de ao menos duas pessoas, contando-se nesse número inclusive eventuais agentes inimputáveis, não identificados, que venham a ter extinta a punibilidade, etc. (ex.: um maior e um menor praticam o furto em concurso; o maior reponderá por furto qualificado);
  • A qualificadora é configurada em qualquer das formas do concurso de agentes, ou seja, tanto na hipótese de coautoria como na de participação;
e) Furto de veículo automotor que é transportado para outro Estado-membro ou para o exterior - §5º
  • Diante da redação do dispositivo, este furto só se consuma quando o veículo ultrapassa a divisa do Estado ou a fronteira do país;
  • Não se admite a tentativa. Se a fronteira ou divisa são ultrapassadas, o agente responde por furto qualificado consumado. Se não são ultrapassadas, a qualificadora não incide;
  • Se um terceiro é contratado para transportar o veículo subtraído a outro Estado ou outro país, é preciso distinguir:
  • Se ele foi contratado e aceitou realizar o transporte antes que o veículo fosse subtraído, ele responde por furto qualificado por esta circunstância e pelo concurso de agentes, na qualidade de partícipe; 
  • Se ele for foi contratado após a subtração, ele responde por receptação.

f) Observações gerais sobre as qualificadoras:

  • A qualificadora do abuso de confiança é a única de natureza subjetiva, e portanto não se comunica a eventuais coautores ou partícipes. Todas as outras qualificadoras são objetivas, e portanto se comunicam, nos termos do CP, art. 30;
  • Pluralidade de qualificadoras no mesmo furto: a jurisprudência tem considerado que, como apenas uma qualificadora basta para a tipificação do furto qualificado, eventuais outras qualificadoras devem ser levadas em conta como circunstâncias judiciais negativas na estipulação da pena-base (ex.: furto em concurso de agentes mediante rompimento de obstáculos - uma qualificadora será considerada para tipificação do furto qualificado e o Juiz fixará a pena-base acima do mínimo considerando a segunda qualificadora).

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