domingo, 6 de abril de 2014

05 - Crimes contra a Pessoa - Lesão Corporal

I - Crimes contra a pessoa.

Capítulo 2º - Das lesões corporais (CP, art. 129)

Lesão Corporal

O crime consiste em ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. 

Ofender é causar dano. A integridade corporal é ofendida quando ocorre um dano físico, anatômico, a tecidos ou órgãos, internos ou externos do corpo. Ex.: escoriação, mutilação, equimose (roxidão), hematoma (equimose com inchaço), etc. Os eritemas (vermelhidão) não configuram lesão corporal.

A saúde é ofendida quando ocorre um dano funcional, que desregula a atuação de órgãos, membros ou aparelhos do corpo. Ex.: a vítima mantém o braço, mas este perdeu sua força; a vítima passa a ter arritmia cardíaca, ou dificuldade para respirar; a vítima mantém os olhos, mas perde a visão; etc.


1) Objeto jurídico

Não é a vida, mas sim a integridade corporal e a saúde física e mental da pessoa humana.

2) Sujeito ativo

Qualquer pessoa. Se a própria vítima provocar em si mesma, dolosa ou culposamente, lesão corporal, sua conduta, em regra, será atípica. No entanto, ela poderá configurar crime se objetivar um fim ilícito. Ex.: autolesão para receber seguro (CP, art. 171, §2º, V); autolesão para realizar aborto (CP, art. 124).


3) Sujeito passivo

Na maioria de suas modalidades, a lesão corporal pode ter como vítima qualquer pessoa. Em algumas hipóteses, é preciso que a vítima apresente uma qualidade especial. Ex.: lesão com resultado "aceleração de parto" ou "aborto", exige vítima gestante; na lesão em circunstância de violência doméstica, a vítima deve ter com o agente uma das relações previstas em lei.

O consentimento da vítima não afasta o crime quando a lesão é grave, gravíssima ou seguida de morte. No caso das lesões leves, considera-se que o bem é disponível e, portanto, se houver consentimento expresso de vítima capaz, isento de coação, este afastará o crime.


4) Tipo objetivo

Trata-se de crime de forma livre, podendo haver ofensa à integridade corporal ou à saúde tanto por ação quanto por omissão. Ex.: a mãe deixa a grade do berço abaixada, levando a criança a cair e ferir-se.

Obs.: lesões em atividades esportivas: como essas atividades são permitidas, considera-se que as lesões decorrentes da prática normal do esporte configuram exercício regular de direito. No entanto, se a lesão tem outra causa, desvinculada do esporte, ela configurará crime ainda que praticada durante o evento esportivo. Ex.: durante uma partida de futebol, dois jogadores se desentendem e, num lance, um deles, por raiva, agride o outro.


5) Espécies de lesão corporal

5.1) Lesão leve ou simples - CP, art. 129, "caput"

Seu conceito é obtido por exclusão. Será leve a lesão que não configurar nenhuma das outras modalidades. Trata-se de infração de menor potencial ofensivo. 

Nos termos do art. 88 da Lei nº 9.099/95, a ação penal nas lesões leves e nas lesões culposas é pública condicionada à representação do ofendido.

Por outro lado, tratando-se de violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha, art. 41, afirma que não se aplica a Lei nº 9.099/95. Por muito tempo se discutiu se este último dispositivo abrangia também o art. 88 da Lei nº 9.099/95. Hoje, após o julgamento pelo STF da ADI nº 4424, pacificou-se o entendimento de que este art. 88 é abrangido por aquele art. 41, e portanto nos crimes de lesão corporal leve em circunstâncias de violência doméstica com vítima mulher, a ação penal é pública incondicionada.

Em razão disso, o MP pode oferecer denúncia mesmo que a mulher vítima tenha se reconciliado com o agressor.


5.2) Lesão grave - CP, art. 129, §1º

Trata-se de hipótese de lesão qualificada pelo resultado. Todas as hipóteses deste §1º, como aquelas do §2º (gravíssimas), admitem a forma preterdolosa, na qual há dolo de ferir, mas o resultado qualificador ocorre por culpa. Ex.: o agente quer ferir a vítima e culposamente provoca sua incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias.

Algumas das qualificadoras dos §§ 1º e 2ª também admitem a forma dolosa. Ex.: querendo amputar o braço a vítima, o agente lhe desfere golpe de machado.

Caberá ao Juiz, nessa última hipótese, levar em consideração o dolo na dosagem da pena. 

Outras formas de lesão qualificada só admitem o preterdolo. Ex.: lesão com resultado aborto, em que há dolo de ferir e culpa no resultado qualificador. Se houver dolo no resultado, o agente responde por lesão não qualificada por essas circunstâncias contra a gestante em concurso formal com aborto.

a) Incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias (inciso I): 

Ocupações habituais é tudo aquilo que faz parte do cotidiano da vítima, e não apenas o trabalho. Ex.: estudar, praticar esporte, tocar um instrumento, etc. 
Por isso, as pessoas que não trabalham podem ser vítimas deste crime. A lei só preteje atividades lícitas. Assim, não incidirá a qualificadora, por exemplo, se o ladrão ficar impossibilitado de empunhar a pistola por mais de 30 dias. A prostituição, embora imoral, é lícita. Portanto, a prostituta que fica impedida de realizar encontros sexuais por mais de 30 dias é vítima desse crime.

A prova dessa qualificadora exige duas perícias. A primeira delas, logo após o fato, para constatar a existência da lesão. A segunda, nos termos do CPP, art. 168, §2º, deve ser realizada logo que decorram os 30 dias, a fim de constatar-se se persiste ou não a incapacidade. A expressão "logo que decorram" tem sido interpretada pela jurisprudência como entre o 31º e em torno do 40º dia. Nos termos do §3º do mesmo artigo, esse exame complementar pode ser suprido, quando não realizado, por prova testemunhal


b) Perigo de vida (inciso II):

É a possibilidade grave, concreta de que a vítima morra em razão da lesão. Ex.: hemorragia, necessidade de ciurgia de risco, coma, etc.

A prova desta qualificadora exige laudo pericial fundamentado que aponte o risco. Nesta hipótese, o crime é exclusivamente preterdoloso, pois o perigo de vida só pode ser provocado por culpa. Se o agente quis colocar a vida da vítima em perigo, ele ao menos assumiu o risco de provocar a sua morte, respondendo, portanto, por homicídio tentado.


c) Debilidade permanente de membro, sentido ou função (inciso III):

Trata-se de resultado que pode ocorrer tanto a título de dolo, como de culpa. Debilidade é a redução, o enfraquecimento da capacidade funcional. Essa capacidade continua presente, mas é diminuída. Ex.: dificuldades de visão, enfraquecimento do braço, dificuldade para caminhar, etc. Se resultar perda total da capacidade funcional, a lesão será gravíssima (CP, art. 129, §2º, III). A qualificadora só se configura se essa debilidade for permanente, ou seja, de duração indefinida e recuperação incerta.

Membros são os apêndices do corpo: braços, pernas, mãos e pés. Os dedos fazem parte dos membros, e portanto o seu enfraquecimento configura a qualificadora.

Sentidos são as faculdades pelas quais o ser-humano toma contato com o mundo exterior: tato, visão, audição, olfato e paladar.

Função é a atividade desenvolvida por órgãos ou membros. Ex.: respiratória, locomotora, reprodutora, etc.

Perda de dentes - deverá ser verificado no caso concreto o prejuízo que a lesão provocou à função mastigatória. Se não houver prejuízo, a lesão será leve. Se houver redução, com dificuldade para mastigar, a lesão será grave por debilidade permanente. Se a vítima não puder mais mastigar, a lesão será gravíssima, por perda da função. A colocação de próteses não afasta a qualificadora.

Questão dos órgãos duplos (rins, olhos, ouvidos, pulmões, testículos, etc.): a perda de função de apenas um deles configura lesão grave por debilidade permanente; a perda de função de ambos configura lesão gravíssima, por inutilização. No entanto, se houver extirpação, mesmo que de apenas um deles, a lesão será sempre gravíssima, pois houve perda.


d) Aceleração de Parto (inciso IV):

Trata-se de lesão contra vítima gestante, estando o agente ciente ou assumindo o risco dessa circunstância. Em razão da lesão, a vítima sofre um parto prematuro e a criança sobrevive. O crime é exclusivamente preterdoloso, pois o agente tem dolo apenas de lesionar a gestante, provocando a aceleração de parto por culpa. Se a interrupção da gravidez estivesse em seu dolo, ele responderia por lesão simples ou qualificada por outra circunstância, contra a gestante, em concurso formal com tentativa de aborto sem o consentimento da gestante.


5.3) Lesão "gravíssima" - CP, art. 129, §2º

A expressão "gravíssima" não está escrita no CP, sendo denominação adotada pela doutrina para distinguir do crime do §1º.

a) Incapacidade permanente para o trabalho (inciso I):

Trata-se de incapacidade duradoura, sem prazo definido, embora não necessariamente perpétua. Trabalho é a atividade remunerada exercida pela vítima. Uma corrente majoritária sustenta que a qualificadora só se configura quando a incapacidade é para todo e qualquer trabalho. Assim, por ex.: se um motorista de ônibus não puder mais dirigir, mas puder trabalhar como cobrador, não incidirá a qualificadora. A corrente minoritária entende que basta a incapacidade para o trabalho que constitui a profissão da vítima, pois do contrário, rarissimamente essa qualificadora se configuraria.

O resultado pode ser provocado tanto a título de dolo, como de culpa.


b) Enfermidade incurável (inciso II):

É a doença física ou mental cuja cura não pode ser alcançada através dos recursos da medicina atual. A qualificadora também incide quando há a possibilidade de cura através de uma cirurgia de alto risco, ou um tratamento experimental ou muito penoso, pois a vítima não é obrigada a se submeter a isso.

Por outro lado, a qualificadora não incide se a cura pode ser alcançada através de um tratamento usual ao qual a vítima se recusa.

O resultado pode ser obtido através de dolo ou culpa. No entanto, se o agente teve dolo de provocar a enfermidade objetivando causar a morte da vítima, responderá por tentativa de homicídio.


c) Perda ou inutilização de membro, sentido ou função (inciso III):

Perda é a extirpação, amputação. Ex.: arrancar perna, olho, destruir tímpanos, etc.

Inutilização é a inaptidão para o desempenho de sua atividade. O órgão ou membro se mantém no corpo da vítima, mas perde totalmente o seu funcionamento. Ex.: cegueira, surdez, paralisia das pernas ou dos braços, etc.

A correção corporal através de próteses não afasta a qualificadora.

Questões da perda de dente e dos órgãos duplos já estudadas.

Perda de hímen: considera-se que a lesão é leve, pois o hímen não desempenha função orgânica no corpo da vítima.


d) Deformidade permanente (inciso IV):

Mudança de forma. É o dano duradouro, sem cura previsível, a uma parte do corpo. Segundo a doutrina, exigem-se para esta qualificadora quatro requisitos:

  • Dano estético importante: é aquele que causa prejuízo à harmonia do corpo. Ex.: queimadura, arrancamento de orelha, grandes cicatrizes, etc.;
  • Irreparabilidade: trata-se de dano que não se corrige naturalmente. A correção através de cirurgia plástica só exclui a qualificadora se o dano desaparecer por completo. Se ele se mantiver, ou mesmo que a vítima se recuse à cirurgia, a qualificadora estará presente;
  • Visibilidade: o dano deve ser visível a terceiros nas situações normais da vida. A jurisprudência tem entendido que a qualificadora só é excluída quando a lesão se situa em locais do corpo raramente vistos por terceiros;
  • Aptidão para causar impressão vexatória: a vítima sofre um dano moral além do dano físico, pois a lesão causa má impressão aos olhos de terceiros. 

O resultado pode ser provocado a título de dolo ou de culpa.


e) Aborto (inciso V)

A vítima é mulher gestante, e o agente conhece ou assume o risco dessa circunstância. Em razão dessa lesão, há uma interrupção da gravidez com a morte do feto. Este crime é exclusivamente preterdoloso, pois o agente tem dolo apenas de lesionar a gestante, sem querer nem assumir o risco de provocar aborto. Caso ele tenha dolo direto ou eventual de provocar aborto, responderá por lesão corporal, simples ou qualificada por outra circunstância, contra a gestante, em concurso formal com aborto (CP, art. 125) consumado.


5.4) Lesão seguida de morte - CP, art. 129, §3º

É crime exclusivamente preterdoloso, em que o agente tem dolo de ferir e provoca a morte da vítima por culpa. Por isso, este crime é chamado também de homicídio preterdoloso. Ex.: querendo ferir a vítima, o agente lhe dá uma facada na perna, no entanto rompe artéria, a vítima sofre hemorragia e morre.

O crime é de lesão corporal, e não de vias de fato seguida de morte. Vias de fato é a contravenção em que o agente agride sem dolo de ferir. Se o agente praticar vias de fato e resultar a morte da vítima, ele responderá por homicídio culposo. Ex.: o agente empurra a vítima levemente, e ela se desequilibra e cai, batendo a cabeça e morrendo.


5.5) Lesão corporal privilegiada - CP, art. 129, §§4º e 5º

Aplicam-se às lesões corporais as mesmas hipóteses de privilégio do crime de homicídio, já estudadas (relevante valor moral, social e domínio de violência emoção logo após injusta provocação). Quando as lesões são leves, graves, gravíssimas ou seguida de morte, aplica-se o §4º, e opera-se uma redução de pena quando presente hipótese de privilégio.

Se as lesões forem leves, o Juiz terá a opção, ainda, de aplicar o §5º e, ao invés de reduzir a pena, substituí-la por multa. O mesmo acontecerá se as lesões forem recíprocas. Lesões recíprocas são aquelas praticadas por duas pessoas, uma contra a outra, injustamente, ou seja, sem que nenhuma delas esteja em legítima defesa. Ex.: após uma discussão verbal, as pessoas trocam empurrões e passam a se agredir ao mesmo tempo.


5.6) Lesão culposa - CP, art. 129, §6º

O agente não quer, nem assume o risco de lesionar, mas provoca a lesão por negligência, imprudência ou imperícia. 

Não se aplica este dispositivo às lesões culposas de trânsito, pois estas configuram o crime do CTB, art. 303.
CTB, art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor: 
Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. 
Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um terço à metade, se ocorrer qualquer das hipóteses do parágrafo único do artigo anterior.
Na lesão culposa, não há distinção entre lesões leves, graves ou gravíssimas, cabendo ao Juiz considerar a natureza das lesões na dosimetria da pena. 

Cuida-se de infração de menor potencial ofensivo, cuja ação penal é sempre pública condicionada à representação (Lei nº 9.099/95, art. 88). 


5.7) Lesão corporal majorada - CP, art. 129, §7º

Aumenta-se a pena da lesão em 1/3 nas mesmas hipóteses do art. 121, §4º, ou seja, vítima menor de 14 ou maior de 60 anos.


5.8) Perdão judicial - CP, art. 129, §8º

Aplica-se à lesão culposa o perdão judicial na mesma hipótese do homicídio culposo (art. 121, §5º) - o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.


5.9) Lesão em circunstância de violência doméstica - CP, art. 129, §9º e 10º

A vítima deste crime tanto pode ser homem como mulher. Se a vítima for mulher, aplicam-se as medidas previstas na Lei Maria da Penha - Lei nº 11.340/06.

Neste crime, a vítima pode ser:

a) Ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro do agente;

b) Pessoa com quem o agente conviva ou tenha convivido. Ex.: estudantes que moram na mesma república. Essa convivência pode até ser pretérita, mas neste caso a lesão deve ter relação com a convivência que existiu entre autor e vítima. Ex.: após a dissolução da república de estudantes, dois deles discutem a propriedade  de um objeto da república e um agride o outro;

c) Prevalência das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.

  • Relações domésticas são as que ocorrem entre pessoas de uma mesma família, ou entre patrões e empregados, que convivam sob o mesmo teto. Ex.: doméstica, caseiro, etc.;
  • Relação de coabitação é a morada duradoura sob o mesmo teto, ainda que de não parentes entre si;
  • Relação de hospitalidade é o convívio eventual, passageiro, sob o mesmo teto.
A violência doméstica hora funciona como qualificadora, hora como causa de aumento de pena nas lesões corporais.

Se a violência doméstica for leve, aplica-se o §9º, ocorrendo uma qualificadora. Se ela for grave, gravíssima ou seguida de morte, aplica-se o §10º, incidindo uma causa de aumento de pena de 1/3.


6) Tipo subjetivo

As lesões leves do "caput" são sempre dolosas. 
As lesões graves do §1º e gravíssimas do §2º, em algumas hipóteses, são dolosas e, em outras, serão preterdolosas. 
A lesão seguida de morte é sempre preterdolosa

O dolo de lesionar é o "animus laedendi", ou "nocendi", ou "vulnerandi".


7) Consumação

Trata-se de crime material, que se consuma quando ocorre o dano à integridade corporal ou à saúde. A tentativa só é possível nas hipóteses dolosas, ocorrendo quando, iniciada a execução, o agente não lesiona a vítima por circunstâncias alheias à sua vontade.

As lesões graves e gravíssimas, nas hipóteses em que ocorrem na forma dolosa, admitem a tentativa branca, e também a tentativa cruenta. Ex.: querendo cegar a vítima, o agente lança ácido em sua face, mas erra o alvo (tentativa branca de lesão gravíssima); querendo amputar a perna da vítima, o agente a golpeia com um machado, mas só provoca lesão leve (tentativa cruenta de lesão gravíssima).

A tentativa de lesão leve é sempre branca ou incruenta, pois se houver lesão o crime estará consumado.

Obs.: vias de fato (LCP, art. 21) é a contravenção em que o agente agride a vítima sem lesão e sem dolo de ferir. Ex.: dar um tapa, puxar o cabelo, dar um leve empurrão. A tentativa branca de lesão corporal se distingue das vias de fato pelo dolo do agente. Se não há dolo de ferir, ele responde pela contravenção; se havia dolo de ferir, responde pela tentativa de lesão.

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