terça-feira, 1 de abril de 2014

04 - Crimes contra a Pessoa - Aborto

I - Crimes contra a pessoa.

Capítulo 1º - Crimes contra a vida (CP, art. 121 a 128)

Estes crimes, quando forem dolosos (que é a regra geral), serão da competência do júri (CF/88, art. 5º, XXXVIII, d), seja na forma consumada, seja na forma tentada.

1) Homicídio (CP, art. 121)

2) Participação em Suicídio (CP, art. 122)

3) Infanticídio (CP, art. 123)

4) Aborto - (CP, art. 124 a 128)

É a interrupção dolosa da gravidez que provoca a morte do produto da concepção. Nosso direito pune o aborto em qualquer fase da gestação, desde a fecundação até o início do parto, com o rompimento do saco amniótico. Apesar disso, uma corrente minoritária sustenta que não haveria crime na fase que vai da fecundação até a nidação, que é a implantação do óvulo no útero. Essa corrente argumenta que, se assim não fosse, a chamada pílula do dia seguinte configuraria o crime de aborto. No entanto, prevalece que haverá crime desde a fecundação, sendo que a permissão legal para essa pílula torna o seu uso exercício regular de direito. 

Também há crime de aborto quando se procura evitar o nascimento de criança que se constatou ser portadora de grave deformidade genética (aborto eugênico ou eugenésico). O STF, julgando a ADPF nº 54/DF, considerou que não há crime exclusivamente quando se constata uma espécie de anomalia que é a anencefalia (ausência total ou parcial de cérebro). Considerou-se que, nesse caso, a criança não tem chance de sobrevivência e a ausência de função cerebral a torna equivalente a uma pessoa com morte cerebral. No entanto, o STF não afastou a tipicidade da conduta quando constatadas outras espécies de anomalia.
ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. (ADPF 54)

4.1) Objeto Jurídico

Em todas as suas formas, o objeto jurídico do aborto é a vida humana. No aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante, também se protege a vida, a integridade física e psíquica da gestante.


4.2) Objeto Material

É a produto da concepção em qualquer das fases de seu desenvolvimento. 


4.3) Sujeito Ativo

No aborto do CP, art. 124, é sujeito ativo a mãe. Nas demais hipóteses, qualquer pessoa.


4.4) Sujeito Passivo

É o produto da concepção em qualquer fase, que se encontra no corpo da mãe. A eliminação de óvulos fecundados num tubo de ensaio (fecundação "in vitro") não configura aborto.


4.5) Meios de Execução

Trata-se de crime de forma livre, podendo ser praticado por ação (ex.: ingerir droga abortiva, agredir a gestante, fazer curetagem) ou por omissão (ex.: deixar dolosamente de ingerir medicamento necessário para manter a gravidez).

O aborto admite até mesmo um meio de execução psíquico (ex.: dar um susto na gestante, deprimi-la com dolo de provocar aborto).


4.6) Elemento Subjetivo

É sempre o dolo, direto ou eventual. Nenhum dos crimes de aborto admite forma culposa.

Se alguém provocar aborto por culpa (ex.: terceiro, agindo culposamente, dá causa a um acidente de trânsito que envolve uma gestante) responderá apenas por homicídio culposo ou lesão culposa contra a gestante. 

Se a própria gestante, agindo culposamente, der causa ao aborto (ex.: carregar peso imprudentemente) sua conduta será atípica.

Preterdolo: se alguém agride uma mulher ciente ou assumindo o risco de que ela esteja grávida (a assunção do risco pode se caracterizar pela desconfiança), mas com dolo exclusivamente de lesiona-la, vindo a provocar culposamente o aborto, responderá pela lesão corporal gravíssima do CP, art. 129, §2º, V. 

Na mesma hipótese, se em lugar do aborto houver antecipação do parto, mas a criança sobreviver, agente responderá por lesão corporal grave do art. 129, §1º, IV.

Se o agente, ao agredir a mulher, tiver dolo direto ou eventual em relação ao resultado aborto, ele responderá pelo crime de aborto sem o consentimento da gestante (art. 125), em concurso formal com o crime de lesões corporais ou homicídio contra a mulher. É o que ocorre, por exemplo, com aquele que mata uma gestante ciente ou assumindo o risco da gravidez. Nessa hipótese, não se aplica ao crime do art. 129 a qualificadora do resultado aborto, pois o crime não é preterdoloso.


4.7) Consumação

Ocorre com a morte do produto da concepção, seja no interior do corpo da mãe, seja após a sua expulsão provocada pelo agente, em consequência das manobras abortivas. Não importa quanto tempo leve para a morte, desde que esta seja consequência do aborto. 

Haverá tentativa quando, realizada a conduta abortiva, a vítima vier a sobreviver. 

Se a criança for expelida com vida e então o agente, praticando uma nova conduta, mata-la, responderá por tentativa de aborto em concurso material com homicídio (se o agente for terceiro) ou infanticídio (se o agente for a mãe).


4.8) Espécies de Aborto Criminoso

a) Autoaborto (CP, art. 124, 1ª parte)

É o crime da gestante que provoca aborto em si mesma, agindo com dolo de abortar. Se a gestante tenta o suicídio e o feto sobrevive, não há crime. Se ela sobrevive mas ocorre o aborto, prevalece que ela responde por autoaborto. Uma corrente minoritária sustenta que não há crime nessa hipótese, pois o resultado seria consequência de uma conduta atípica, que é a tentativa de suicídio. 

O autoaborto é crime de mão própria, pois não admite coautoria, já que apenas a gestante pode ser autora da conduta típica "provocar aborto em si mesma". No entanto, o crime admite participação de terceiro, na forma instigação, induzimento ou auxílio. Ex.: o namorado convence a gestante a provocar aborto em si mesma, ou lhe fornece a droga abortiva, hipóteses em que ambos responderão por autoaborto, pois a circunstância pessoal da gestante, sendo elementar do crime, se comunica ao namorado (CP, art. 30).

No entanto, se o namorado for além dessa participação e concorrer com a gestante nos atos executórios do aborto (ex.: após ela tomar a droga, ele aperta sua barriga para expelir o feto) responderá como autor do crime do art. 126, "caput" (aborto consensual) e ela responderá por autoaborto.


b) Aborto Consentido (art. 124, 2ª parte)

É o crime da gestante que consente que um terceiro lhe provoque aborto. Também é crime de mão própria, pois só a gestante pode realizar a conduta típica - CONSENTIR que outrem lhe provoque o aborto. Este crime também admite a participação de terceiro. Ex.: o namorado convence a gestante a procurar o médico que lhe fará o aborto, leva-a até a clínica, etc.

O terceiro que realiza o aborto com o consentimento da gestante é autor do aborto consensual do art. 126. Ocorre aqui uma exceção pluralística à teoria monista do concurso de agentes adotada pelo CP, art. 29. Embora a gestante e o terceiro concorram para a realização do mesmo aborto, eles responderão por crimes diferentes.


c) Aborto Sem o Consentimento da Gestante (art. 125 e 126, Parágrafo único)

É provocado por terceiro, sendo a mais grave das formas de aborto, pois são vítimas a gestante e o produto da concepção. O sujeito ativo é qualquer pessoa, exceto a própria gestante. A forma de realização é livre. Ex.: agredir a gestante; matar a gestante ciente da gravidez; colocar ocultamente droga abortiva na comida da gestante, etc.

Existem hipóteses, previstas no art. 126, Parágrafo único, em que a gestante dá o seu consentimento, mas ele é viciado, fazendo com que o agente, caso tenha conhecimento desse vício, receba a pena do aborto não consentido. São as hipóteses em que a vítima gestante (i) não é maior de 14 anos, situação que perdura até o dia do aniversário de 14 anos da vítima; (ii) é alienada ou débil mental; (iii) deu o seu consentimento mediante fraude, grave ameaça ou violência, como por exemplo fazê-la acreditar falsamente que o aborto é o único meio de lhe salvar a vida (fraude), ou o pai que ameaça expulsa-la de casa, ou a agride para que concorde.

Em qualquer dessas hipóteses, o terceiro que realizar o aborto receberá a pena do crime mais grave do art. 125 se ele tiver conhecimento de uma dessas circunstâncias (dolo direto) ou se, desconfiando delas, realizar o aborto assumindo o risco de sua presença (dolo eventual), como no caso em que o aborteiro desconfia que a gestante é menor de 14 anos, mas ainda assim realiza o aborto.

Se alguém atentar contra uma grávida de gêmeos, conhecendo esta circunstância, responderá por dois abortos, em concurso formal. Se ele desconhecia esta circunstância, responderá por um só crime de aborto.


d) Aborto consensual (art. 126, "caput")

É o crime do terceiro que realiza o aborto com a concordância da gestante. O sujeito ativo é qualquer pessoa, admitindo-se coautoria (ex.: dois médicos realizam conjuntamente o aborto) e participação (ex.: enfermeira).

Se a conduta do partícipe for vinculada à execução do aborto, ele responde por este crime do art. 126. Se a sua conduta  for vinculada apenas ao consentimento da gestante, ele responderá como partícipe do crime do art. 124, segunda parte. Se ele, além de contribuir para o consentimento da gestante, também auxiliar o terceiro na execução do aborto, responderá apenas pelo crime do art. 126, que absorve a sua participação no consentimento da gestante, como no caso do namorado que convence a gestante a procurar o aborteiro e também ajusta este durante a execução do ato.

Para que o agente responda por este crime menos grave, o consentimento da gestante não pode estar viciado por nenhuma das circunstâncias do art. 12, Parágrafo único, ou a gente deve desconhecer estar circunstância. Além disso, o consentimento da gestante deve ser inequívoco, sem hesitação. A forma de manifestação desse consentimento é livre: verbal, por escrito, por gestos, etc.

Esse consentimento deve persistir até a consumação do ato. Se antes dela, a gestante, arrependida, manifestar o desejo de que a conduta seja interrompida, e o terceiro prosseguir, a conduta para ela será atípica, e ele responderá pelo crime mais grave do art. 125.


d) Aborto Majorado - art. 127

Este artigo prevê causas de aumento de pena de 1/3 se em consequência do aborto ou dos meios empregados para realiza-lo, resultar na gestante lesão grave, e a pena será dobrada se resultar nela a morte.

Em ambas as formas, o aborto majorado é crime exclusivamente preterdoloso (dolo no aborto e culpa no homicídio). As lesões leves na gestante são absorvidas pelo crime de aborto. Se houver dolo, direto ou eventual, em relação a ambos os resultados, haverá concurso formal entre aborto não majorado + lesão grave ou homicídio. Ex.: ciente de que a vítima está grávida, o agente a agride assumindo o risco de que ela aborte, ou ele a mata; ao realizar o aborto, o médico prevê, pelas condições da gestante, que esta poderá sofrer lesão grave ou morte, e ele realiza o ato aceitando este resultado.

Se houver tentativa de homicídio da gestante e a gravidez prosseguir até o fim, vindo a criança a nascer com vida, e depois morrendo a criança, em razão do ferimento recebido pela mãe, o agente responderá por tentativa de homicídio contra a mãe e homicídio consumado contra a criança. Neste caso, não houver aborto, porque não houve interrupção da gravidez, já que esta prosseguiu até o final.

- Hipótese de aborto tentado e resultado culposo lesão grave ou morte consumado: nessa situação, o agente tinha dolo apenas de provocar aborto, mas a criança sobrevive. A mãe sofre lesão grave ou morre. Nessa situação, prevalece o entendimento de que o agente responde pelo aborto majorado consumado pois, embora o resultado lesão grave ou morte não tenha decorrido do aborto, já que este não se consumou, ele decorreu "dos meios empregados para provocá-lo", o que também tipifica o aborto majorado. Uma corrente minoritária entende que a hipótese configura aborto majorado tentado.


e) Aborto Permitido - art. 128

Em duas hipóteses, a lei afirma que "não se pune o aborto praticado por médico". Embora o texto leve a crer que se trata de hipótese de exclusão apenas da punibilidade, mas não do crime, prevalece o entendimento de que são causas de exclusão da própria antijuridicidade. É lícito realizar o aborto nessas circunstâncias, e portanto não há crime. Em ambos os casos, estas excludentes só se aplicam se o autor do aborto for médico.

- Inciso I: aborto necessário, ou terapêutico: é aquele realizado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. São necessários, portanto, dois requisitos cumulativos: risco concreto de morte da gestante, caos a gravidez prossiga e ausência de qualquer outro meio para salvar sua vida. Não é preciso que o risco seja atual, bastando a constatação de que em algum momento da gravidez a gestante morrerá em razão dela. Ex.: gravidez tubária (nas trompas).

Como a vida é bem indisponível, não se exige o consentimento da gestante. Também não é necessária autorização judicial (dá extinção por carência de ação), mesmo porquê só um médico pode avaliar esta situação.

A excludente só se aplica ao aborto realizado por médico. Se for realizado por não médico, será preciso distinguir: (i) caso o perigo seja atual, incidirá a excludente do estado de necessidade; (ii) se não houver risco atual, haverá crime.


- Inciso II: aborto humanitário, ou sentimental, ou ético, ou piedoso: é aquele que ocorre na gravidez resultante de estupro. A palavra "estupro" significa o crime do CP, art. 213, e também abrange o estupro de vulnerável do art. 217-A. Nesta hipótese do aborto humanitário, exige-se o consentimento da gestante ou de seu representante legal, já que a eles é dada a opção de manter a gravidez.

Não se exige autorização judicial, embora por vezes, na prática, ela seja requerida. Como prova do estupro, não é necessário que o autor deste tenha sido condenado. Nem mesmo é preciso que haja inquérito ou ação penal em andamento. Qualquer meio de prova basta para isentar de responsabilidade penal o médico que de boa fé realiza esse aborto: declarações da gestante, boletim de ocorrência, testemunhas, etc.

Caso mais tarde se verifique que o estupro não ocorreu, a ex-gestante responderá pelo crime do CP, art. 124, e por eventual falsa comunicação de crime (CP, art. 340). O médico estará acobertado por uma descriminante putativa, não tendo praticado crime.

Nesta hipótese, somente estará afastado o crime se o aborto for realizado por médico. Como não há risco para a gestante, se um não médico o realizar, cometerá crime.

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