1) Apropriação Indébita - CP, art. 168
Trata-se do crime em que o agente, estando na posse ou detenção de coisa alheia, inverte essa posse ou detenção, passando a comportar-se como proprietário.
1.1) Sujeito Ativo
Qualquer pessoa, exceto o proprietário, pois a coisa é alheia.
O condômino sócio ou coerdeiro que se apropria de coisa comum e infungível pratica o crime. Se a coisa for fungível, haverá crime se ele ultrapassar a sua cota, pois do contrário não há lesão ao patrimônio alheio.
1.2) Sujeito Passivo
É a pessoa menor de 60 anos que suporta o dano patrimonial. Se a vítima dessa conduta já completou 60 anos, o crime é o do Estatuto do Idoso, art. 102.
1.3) Tipo Objetivo
A conduta é apropriar-se, que significa tomar como própria, fazer sua, a coisa de outrem. O agente, a partir de determinado momento, passa a se comportar como se fosse dono da coisa alheia de que tinha a posse (ele vende, doa, aluga, etc.).
São requisitos do crime:
a) Entrega voluntária e consciente do bem ao agente: o agente passa a ter a posse legítima da coisa. Na posse ilegítima o crime é outro (ex.: se o agente subtraiu a coisa, há furto; se a entrega foi inconsciente por fraude do agente ou erro da vítima, o crime é estelionato);
b) Posse ou detenção desvigiada da coisa: após a entrega da coisa, o agente passa a ter a posse livre de fiscalização, podendo levá-la consigo, pois está autorizado a fazê-lo (ex.: o agente aluga um DVD na locadora e pode levá-lo para casa). Se a posse é vigiada e o agente não está autorizado a levar a coisa, o crime é furto (ex.: o caixa do supermercado leva dinheiro que recebeu dos clientes; o cliente leva a roupa que recebeu para experimentar na loja; o leitor leva o livro que recebeu para ler na biblioteca. Em todos esses exemplos, o crime é de furto, pois o agente não tem posse desvigiada, não estando autorizado a levar a coisa);
- Nélson Hungria diz que se o agente recebe um cofre fechado para transportar e o arromba comete furto, pois a posse não é livre, mas restrita. No entanto, se o cofre está aberto, o crime é de associação indébita.
c) Recebimento de boa-fé: na apropriação indébita, o agente recebe a coisa sem dolo, pretendendo devolver. O dolo de apropriação é necessariamente posterior ao recebimento da coisa. Se ao receber a coisa o agente já tem o dolo de não devolver, o crime é estelionato;
d) Modificação posterior do comportamento do agente: a partir de determinado momento, o agente resolve se apropriar e exterioriza esse dolo de apropriação através de uma de duas condutas:
- Prática de ato de disposição da coisa (apropriação indébita própria ou propriamente dita): trata-se da forma comissiva em que o agente pratica um ato próprio de dono da coisa (ex.: vende, doa, aluga, permuta, consome, altera, etc.);
- Recusa de restituição (apropriação indébita negativa de restituição): trata-se de forma omissiva, em que o agente, devendo restituir, deixa de fazê-lo. Se houver prazo para a devolução, a conduta se caracteriza pelo decurso desse prazo. Se não houver, ela ocorrerá quando a vítima solicitar a coisa e o agente deixar de atendê-la. Basta uma solicitação, não sendo necessária uma interpelação judicial ou ação de prestação de contas.
1.4) Tipo Subjetivo
É o dolo com o ânimo de apossamento definitivo (animus rem sibi habendi). Não se trata, portanto, de mero atraso na devolução. Esse dolo é subsequente à posse.
Como se exige o ânimo definitivo, não há apropriação indébita de uso (ex.: mecânico usa carro dos clientes no fim de semana: a conduta é atípica).
1.5) Consumação
Na apropriação indébita própria, que é comissiva, a consumação ocorre quando o agente pratica o ato próprio de dono (ex.: vende ou doa). Admite-se a tentativa (ex.: ele anuncia para vender e não vende).
A apropriação indébita negativa de restituição se consuma, se houver prazo, quando este é ultrapassado. Se não houver, quando o agente deixa de atender a solicitação de restituição. Nessa forma omissiva, não se admite tentativa.
1.6) Causas de Aumento de Pena - §1º
a) Coisa recebida em depósito necessário - inciso I: este dispositivo só se refere ao chamado depósito necessário miserável do CC, art. 647, II, pois as outras formas de depósito necessário estão abrangidas pelas outras majorantes. Depósito miserável é aquele em que a coisa é recebida em razão de calamidade (naufrágio, incêndio, terremoto, etc.);
b) Coisa recebida na qualidade de tutor, curador, "síndico" (administrador judicial da falência), liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial - inciso II. Embora algumas das pessoas mencionadas sejam funcionários públicos para fins penais, seu crime será este, e não peculato, em razão desta previsão legal;
c) Coisa recebida em razão de emprego, ofício ou função - inciso III (ex.: motorista da empresa que se apropria do automóvel recebido para trabalhar). Quando o valor da coisa é pequeno e o agente é primário, aplica-se a figura privilegiada - art. 170, nos mesmos moldes do furto privilegiado do art. 155, §2º.
2) Estelionato - art. 171
Trata-se de crime patrimonial em que o agente emprega fraude para a obtenção da vantagem ilícita.
2.1) Sujeito Ativo
Qualquer pessoa.
2.2) Sujeito Passivo
São vítimas tanto aquele que é enganado pela fraude, como aquele que sofre dano patrimonial. As vítimas devem ser pessoas determinadas. Do contrário, o crime poderá ser outro, como crime contra a economia popular, contra o consumidor, etc.
2.3) Tipo Objetivo
A conduta é obter, ou seja, conseguir um lucro indevido, enganando a vítima, que contribui para isso sem perceber que está sendo enganada. O agente induz ou mantém a vítima em erro.
- Induzir em erro é persuadir, criar a ideia falsa (ex.: o agente comparece em estacionamento e faz o manobrista acreditar que é o dono de um veículo ali estacionado, recebendo o veículo do manobrista);
- Manter em erro é conservar um equívoco espontâneo da vítima, em que ela incorreu antes da conduta do agente (ex.: o agente faz uma compra no valor de 1 pagando com uma nota de 2 reais, e o vendedor equivocadamente pensa ter recebido uma nota de 100, devolvendo 99 de troco; o agente silencia e aceita o dinheiro);
- Erro é a falsa percepção da realidade, que vicia a vontade da vítima;
- Os meios de execução para induzir a vítima em erro podem ser o artifício, o ardil, ou outro meio:
- Artifício é a fraude material, em que o agente utiliza algum instrumento ou objeto para enganar (ex.: uso de documento falso; vestir macacão de mecânico para receber o automóvel);
- Ardil é a fraude intelectual, consistente apenas em uma conversa enganosa (ex.: convencer a vítima a fazer uma doação para uma instituição de caridade que não existe);
- Qualquer outro meio fraudulento é qualquer conduta, comissiva ou omissiva, que induza ou mantenha a vítima em erro (ex; no exemplo do troco, o meio fraudulento empregado foi a mera omissão, o silêncio.
Em qualquer hipótese, a fraude é anterior à obtenção da vantagem, pois é meio para ela.
A vantagem indevida deve ter natureza econômica, pois o crime é patrimonial. Além disso, ela deve ser ilícita, indevida. Se a vantagem for devida, poderá haver crime de exercício arbitrário das próprias razões - art. 345.
A chamada "torpeza bilateral", em que também a vítima pretende uma vantagem indevida, não afasta o estelionato (ex.: vender à vítima uma máquina de falsificar dinheiro que não funciona; vender a um traficante talco em lugar de cocaína; etc. Nessas hipóteses, apesar da má-fé da vítima, o agente responde por estelionato).
2.4) Tipo Subjetivo
É o dolo de obter vantagem ilícita para si ou para outrem. O dolo é sempre preordenado, ou seja, ele antecede a obtenção da vantagem. Do contrário, haverá ou apropriação indébita, ou mesmo mera inadimplência civil (ex.: se o agente vai a uma locadora pretendendo alugar um automóvel já com o dolo de ficar com ele para si, seu crime é estelionato; no entanto, se ele aluga o carro sem dolo, pretendendo devolvê-lo, e depois resolve ficar com ele, seu crime é apropriação indébita).
Se o sujeito toma dinheiro emprestado já pretendendo não restituir, seu crime é estelionato; no entanto, se ele toma o dinheiro emprestado pretendendo restituir, gasta o dinheiro e não consegue pagar a dívida, há aí mero ilícito civil (inadimplência), não havendo que se falar em crime.
2.5) Consumação
Trata-se de crime material, que se consuma com a obtenção da vantagem. Haverá tentativa quando, empregada a fraude, o agente não obtém a vantagem por circunstâncias alheias à sua vontade.
A reparação posterior do dano não afasta o crime, podendo configurar arrependimento posterior (causa de diminuição de pena).
2.6) Concurso de Crimes e Distinções
a) Estelionato e curandeirismo - art. 284: se o agente acredita que pode curar, seu crime é o de curandeirismo, ainda que ele receba dinheiro na sua atividade. Se ele não acredita que pode curar e recebe vantagem para fazê-lo, seu crime é estelionato;
b) Estelionato e furto mediante fraude - art. 155, §4º, II: no furto mediante fraude, o agente subtrai a coisa, empregando a fraude como meio de afastar a vigilância da vítima (ex.: em loja de roupas, um dos agentes distraia a vendedora para que o outro efetue a subtração). No estelionato é a própria vítima que, enganada pela fraude, faz a entrega da coisa;
c) Estelionato e falso documental (ou uso de documento falso): será estudado na análise do art. 297;.
2.7) Estelionato Privilegiado - art. 717, §1º
Quando é pequeno o valor do prejuízo (segundo a jurisprudência, de até um salário mínimo), e sendo primário o agente, o Juiz pode aplicar ao estelionato o que está previsto para o furto privilegiado - art. 155, §2º (substituir a pena de reclusão pela de detenção, aplicar apenas a multa ou diminuir a pena de 1/3 e 2/3).
2.8) Fraude no Pagamento por Meio de Cheque - art. 171, §2º, IV
Trata-se de uma forma de estelionato em que o agente obtém a vantagem ilícita através de um cheque.
2.8.1) Tipo Objetivo
As condutas são duas:
a) Emitir cheque sem provisão de fundos: o próprio agente emite o cheque de sua titularidade sem fundos em poder do sacado, e sem a intenção de cobrir esses fundos;
b) Emitir cheque e depois frustrar seu pagamento: nessa modalidade do crime, o agente emite o cheque de sua titularidade, com fundos no momento da emissão. Em seguida, sem justa causa, ele frustra o pagamento do cheque (dá contra ordem, realiza saque do valor, encerra a conta, etc.).
- Se o agente utiliza cheque de terceiro, fazendo-se passar pelo titular; ou se ele emite cheque de uma conta já encerrada; ou ainda se ele havia sustado os cheques em razão de perda ou roubo e depois os encontra, vindo a emiti-los, seu crime é o do art. 171 caput.
- Questão do cheque pré-datado: a Lei nº 7.357/85 (Lei do Cheque), define cheque como ordem de pagamento a vista. O chamado cheque pré-datado, na verdade, não tem natureza de cheque, pois constitui uma mera promessa de pagamento futuro, na qual o tomador admite a possibilidade da ausência de fundos no momento da emissão. Por isso, a jurisprudência tem afirmado que o cheque pré-datado não configura este crime. Se na data avençada para o pagamento não há fundos porque o devedor não conseguiu cobrir o cheque, há mera inadimplência. No entanto, se houve dolo pré-ordenado, ou seja, ao emitir o cheque o devedor já tinha o dolo de não honrar o pagamento, está configurado o estelionato do caput do art. 171.
- Cheque para pagamento de dívidas de jogos ou imorais: segundo a jurisprudência, nessas hipóteses o cheque sem fundos não configura crime.
2.8.2) Sujeito Ativo
É o emitente do cheque, que é o titular da conta bancária.
2.8.3) Sujeito Passivo
É o tomador do cheque, que sofre o prejuízo.
2.8.4) Elemento Subjetivo
É o dolo, que na primeira modalidade consiste na ciência da ausência de fundo, e na segunda na vontade de frustrar, sem justa causa, o pagamento. Sem fraude, não há crime, nos termos da Súmula nº 246-STF.
Não há fórmula culposa. Assim, se o agente emite o cheque supondo equivocadamente que ele tem fundos, ou se ele acredita ter justa causa para impedir o pagamento, ele incide em erro de tipo, que afasta o dolo.
2.8.5) Consumação
Segundo a jurisprudência, o crime não se consuma no local e no momento da emissão do cheque, mas sim no local e no momento em que o banco sacado recusa o pagamento, pois até aquele momento o agente poderia ter coberto o cheque, ou voltar atrás na conduta de frustrar o pagamento. Por isso, a Súmula nº 521-STF afirma que o foro competente, neste crime, é o do local em que houve a recusa do pagamento (ex.: em Brasília, o agente emite cheque sem fundos de uma agência bancária localizada em São Paulo. Será competente o foro de São Paulo).
A tentativa é possível em ambas as modalidades do crime (ex.: o agente emite cheque sem fundos, mas sua esposa, sem seu conhecimento, deposita o valor, e o tomador o recebe; o correntista tenta sustar o cheque, mas não consegue fazê-lo a tempo).
- Reparação do dano: em 1976, o STF editou a Súmula nº 554, segundo a qual neste crime a reparação do dano posterior ao recebimento da denúncia não impede o prosseguimento da ação. Por isso, a jurisprudência passou a entender que a reparação do dano anterior ao recebimento da denúncia é causa extintiva da punibilidade neste crime. Em 1984, ao reformar a parte geral do CP, a Lei nº 7.209/84 introduziu no art. 16 o arrependimento posterior consistente na reparação do dano anterior ao recebimento da denúncia ou queixa como mera causa de diminuição de pena. Por isso, uma corrente passou a sustentar que a nova lei afastava o entendimento anterior. Apesar disso, ainda hoje é majoritário o entendimento no sentido da extinção da punibilidade.