segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

23 - Crimes contra a Paz Pública


Crimes contra a Paz Pública

1) Introdução

Neste Título IX da Parte Especial do CP, o legislador pune como crimes autônomos atos que constituem mera fase preparatória para outros crimes. Nos termos do art. 31, o mero ajuste, determinação, instigação ou auxílio para a prática de crimes são atípicos se aquele crime não chega a ser, pelo menos, tentado. 

Os crimes deste capítulo constituem exceções a essa regra, pois eles configuram a tipificação de atos meramente preparatórios de outros crimes, independentemente de que estes ocorram. Por isso, costuma-se dizer que os crimes deste Título exprimem a pressa do legislador, pois ele pune antecipadamente condutas que, segundo a regra do art. 31, seriam atípicas não fosse esses tipos penais

Assim, se um sujeito instiga outro a matar alguém, mas este se recusa a fazê-lo, a conduta do primeiro não é punível, muito embora ele pretendesse produzir um crime. Por outro lado, se três ou mais pessoas se associam objetivando praticar crimes indefinidamente, eles já praticam o crime contra a paz pública do art. 288, ainda que não venham a praticar nenhum outro crime. Sua conduta é punida antecipadamente à prática de qualquer outro crime.

O objeto jurídico destes crimes é a paz pública, que consiste na tranquilidade social, no sentimento de paz e de segurança da sociedade.

O sujeito ativo de todos esses crimes é qualquer pessoa (são crimes comuns) e o sujeito passivo é sempre a coletividade.


2) Incitação ao Crime - art. 286

A conduta consiste em incitar publicamente a prática de crime.


2.1) Tipo Objetivo

O núcleo é incitar, que significa estimular, induzir, instigar, tentar convencer. Essa incitação deve ser à prática de crime, e não de contravenção. No caso da instigação à prática de contravenção, se esta vier a ser praticada, quem a incitou responde por ela, como partícipe. Se ela não for praticada, aplica-se o art. 31, ou seja, a conduta daquele que incitou é atípica.

Esta conduta do art. 286 só configura crime se o crime instigado pelo agente não ocorrer, ou seja, se a instigação fracassar e o crime nem mesmo chegar a ser tentado. Isto porque se a instigação produzir efeito e pessoas incitadas praticarem ou tentarem praticar aquele crime, aquele que as incitou responderá como partícipe daquele crime, e essa participação absorverá a mera instigação. Não há concurso de crimes entre esta instigação e o crime instigado.

A incitação deve ter por objeto crime ou crimes determinados (ex.: incitar pessoas a linchar alguém; a desobedecer uma ordem judicial; a queimar uma viatura, etc.).

A incitação genérica à prática de crimes, ou a defesa da legitimidade de uma conduta criminosa, são atípicas. Por isso, não configura este crime, por exemplo, defender o aborto, ou a eutanásia; a "marcha da maconha", etc.). No entanto, se o agente instigar uma gestante a abortar, ou alguém a matar um doente terminal, ou a portar maconha, ele responderá por este crime, desde que a instigação fracasse.

A conduta deve ser praticada "publicamente", ou seja, em local público, acessível a número indeterminado de pessoas. A conduta praticada privadamente é atípica, ainda que terceiros a presenciem.

O modo de execução é livre: oralmente, por escrito, através de cartazes, panfletos, etc.


2.2) Tipo Subjetivo

É o dolo específico de incentivar a prática do crime.


2.3) Consumação

Ocorre quando a incitação chega ao conhecimento de terceiro.

Na forma oral presencial, o crime não admite tentativa. Na forma escrita ela é possível (ex.: o agente prepara panfletos para serem afixados na rua, mas estes são apreendidos antes de sua distribuição ou afixação).


2.4) Distinção

A legislação especial prevê tipos específicos de incitação a alguns crimes (ex.: incitação ao genocídio - Lei nº 2.889/56, art. 3º; instigação a crime contra a segurança nacional - Lei nº 7.170/83, art. 23, XXIV).


3) Apologia de Crime ou Criminoso - art. 287

A conduta consiste em "fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime".

No crime anterior, o agente incita alguém publicamente à prática de um crime não acontecido, que ele quer que aconteça. Neste crime do art. 287, há uma incitação indireta, pois o agente elogia um crime já acontecido ou o autor desse crime, com o objetivo de incentivar a sua repetição (ex.: se o agente incentivar publicamente uma gestante a abortar, comete o crime do art. 286; no entanto, se ele elogiar para a gestante uma mulher que fez aborto, querendo levá-la a seguir esse exemplo, seu crime é este do art. 287).


3.1) Tipo Objetivo

A conduta é fazer apologia, que significa elogiar intensamente, enaltecer, louvar. O agente elogia um fato criminoso já acontecido ou o autor desse crime. Não é necessário que este fato ou sua autoria estejam provados, nem que haja inquérito, ação penal ou condenação por esse fato. Basta o elogio a um crime supostamente acontecido, ou ao suposto autor deste crime, pois isso já basta para ofender a paz pública.

A doutrina entende que o crime objeto da apologia só pode ser doloso. O elogio a uma conduta culposa, sem intenção, não ofende a paz pública.

O elogio a uma contravenção penal ou ao seu autor é atípico.

A apologia deve ser relacionada ao crime, em uma relação de causa e efeito. Não configura este crime o elogio a um criminoso que não tem relação com o crime cometido (ex.: elogiar os atributos físicos do autor do crime, defender sua inocência, etc.).

Da mesma forma, solidarizar-se com o autor do crime sem elogiar a prática criminosa é conduta atípica (ex.: dizer que ele está sendo perseguido, tentar justificá-lo, etc.).

Assim como ocorre no crime anterior, a apologia só é criminosa quando feita publicamente, isto é, em local acessível a número indeterminado de pessoas.


3.2) Elemento Subjetivo

É o dolo genérico.


3.3) Consumação

Trata-se de crime formal, que se consuma quando terceiros tomam conhecimento da apologia, independentemente de elas imitarem o criminoso. Se elas o fizerem, haverá mero exaurimento.

Diferentemente do que ocorre no crime anterior, a mera apologia de crime já ocorrido ou de seu autor não basta para tornar o agente partícipe de eventual crime que venha a ser cometido em razão dessa apologia. O agente que fez a apologia responderá apenas pelo crime do art. 287.

A tentativa só é admissível na forma não oral presencial.


3.4) Distinção

A apologia a crime contra a segurança nacional configura o crime da Lei de Segurança Nacional, art. 22, IV.


4) Associação Criminosa - art. 288, com redação pela Lei nº 12.850/13

A conduta consiste em "associarem-se três ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes".

A Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, trata do combate às organizações criminosas. Além de definir organização criminosa, ela, dentre outras alterações, modificou o art. 288 do CP, antigamente denominado "quadrilha ou bando".

A lei empregava as palavras "quadrilha e bando" como sinônimas, mas parte da doutrina sustentava que quadrilha era associação que atuava nas cidades, e bando na zona rural.

A mudança legislativa passou a denominar a conduta de "associação criminosa". O crime hoje consiste no concerto de vontades de três ou mais pessoas, com o objetivo de praticar crimes.

Mais uma vez, o legislador se apressa, punindo antecipadamente a mera conjugação de vontades, antes mesmo que qualquer crime venha a ser praticado.

Trata-se de crime de perigo abstrato, pois a lei presume que este mero acordo de vontades já coloca em risco a paz pública.


4.1) Sujeito Ativo

Trata-se de crime coletivo, ou plurisubjetivo, ou de concurso necessário, pois ele exige ao menos três pessoas (obs.: na lei anterior a quadrilha ou bando exigia "mais de 3", ou seja, ao menos 4, daí quadrilha).

Computam-se neste número os inimputáveis, pois a lei se refere a "pessoas", e não agentes imputáveis. Assim, haverá associação criminosa, por exemplo, se um maior se associar a dois menores, embora só o primeiro responda pelo crime. Também se computam neste número os associados não identificados, desde que haja certeza de sua participação na associação.

A extinção da punibilidade de um ou alguns membros não extingue a punibilidade de outros (ex.: a prescrição favorece um dos membros que é menor de 18 anos; um ou alguns dos membros morre etc. Os demais respondem pelo crime).

  • Questão da absolvição de um dos membros: suponha-se que quatro réus respondam por associação criminosa e o Juiz na sentença conclui que em relação a apenas um deles não há prova de participação, absolvendo-o. Os outros três podem ser condenado por associação criminosa, pois eles perfazem um número mínimo de participantes. Por outro lado, se havia suspeita apenas contra três envolvidos, sem indício de participação de mais ninguém, a absolvição de um deles por não participação afasta a tipicidade da conduta dos outros dois, pois em relação a esses, dado o seu número, há apenas concurso de agentes, e não associação criminosa.
Três é o número mínimo de participantes necessários para a tipicidade da conduta. Eventual número maior de participantes deverá ser considerado pelo Juiz na dosagem da pena. 

Não é preciso que haja líder, nem hierarquia, nem repartição de tarefas; nem mesmo é preciso que todos os participantes se conheçam entre si, bastando a sua ligação com a associação.


4.2) Sujeito Passivo

A coletividade.


4.3) Tipo Objetivo

A conduta é associarem-se, que tem o sentido de formar uma sociedade, unir-se, fazer uma aliança com a finalidade de praticar crimes. Os membros formam uma sociedade como se fossem sócios de uma empresa, ou seja, eles formam um vínculo de caráter permanente, com ânimo de estabilidade, para praticar número indeterminado de crimes. 

Observe-se que o tipo penal utiliza crimes no plural. Portanto, não há associação criminosa quando o objetivo da união é praticar um só crime. Também não há associação criminosa quando a intenção é praticar um número determinado de crimes. Só há associação criminosa para a prática, em caráter permanente, de número indeterminados de crimes (ex.: agentes se unem e conjugam esforços para assaltar número indeterminado de bancos, ou para praticar número indeterminado de homicídios, etc.).

É esta estabilidade e indeterminação que diferencia a associação criminosa do mero concurso de agentes.

Não é preciso que todos os membros participem de todos os crimes da associação; cada membro responderá pelos crimes de que participar, mas todos responderão por um crime de associação criminosa. A associação pode ser especializada em alguns crimes, ou não. 

A palavra "específico" levanta uma dificuldade: ela daria a entender que só há associação criminosa se a finalidade exclusiva da associação for praticar crimes, ou seja, o tipo penal não abrangeria as associações que, ao lado da prática de crimes, também praticassem condutas lícitas (ex.: vender peças de automóveis de origem lícita e também de origem ilícita; comercializar automóveis e cocaína, etc.). Prevalece o entendimento de que a palavra "específico" não tem o sentido de exclusivo, servindo apenas para enfatizar que não há associação criminosa se não estiver presente a finalidade de cometer crimes.

Só há crime de associação criminosa quando a finalidade for cometer crimes dolosos, pois a associação de pessoas pressupõe o dolo. Ninguém se associa sem finalidade, sem intenção. Não há associação para cometimento de crimes culposos.

A associação para o cometimento de contravenção penal não configura este crime do CP, art. 288 (a conduta é atípica).

A associação criminosa é crime autônomo, pois a sua configuração não depende da prática, pelos associados, de qualquer crime.


4.4) Tipo Subjetivo

É o dolo, consistente na vontade de associar-se com ânimo de permanência para cometer crimes de qualquer natureza.


4.5) Consumação

Ocorre com a união de vontades entre ao menos 3 integrantes para a prática de crimes. Se alguém, em determinado momento, adere a uma associação já existente, para ele o crime se consuma no momento dessa adesão. 

O crime é permanente, pois a consumação se prolonga enquanto persiste a união de vontades. Portanto, admite-se prisão em flagrante a qualquer tempo, enquanto durar a permanência (CPP, art. 303).

A consumação do crime de associação antecede e prescinde da prática de qualquer outro crime pelo grupo. Se além de associarem-se eles efetivamente praticarem outros crimes, haverá concurso material entre esses crimes e a associação criminosa.

Não se admite tentativa. A mera tentativa de aliciamento de pessoas para formar uma futura associação é considerada ato preparatório, impunível.


4.6) Causas de Aumento de Pena - art. 288, Parágrafo único

a) Associação armada: a lei anterior previa que nesse caso a pena seria aplicada em dobro. A lei atual é mais benéfica, pois prevê aumento de "até a metade". Por falha do legislador, só se estipulou o aumento máximo, e não o mínimo, o que permite que o Juiz não aumente a pena.
  • Discute-se o conceito de associação armada. Uma corrente entende que é preciso que a maioria dos membros possua armas. Para outra corrente, a associação será armada quando houver incremento do perigo em razão ou do número de agentes armados, ou da natureza da arma. Assim, se houver apenas um revólver, a majorante não incide, mas incidirá se for apenas uma metralhadora. O que prevalece é uma terceira corrente para a qual basta que um dos membros possua arma.


b) Participação de criança ou adolescente: neste ponto a lei é mais gravosa, pois a lei anterior não previa esta majorante. Para que incida o aumento sobre os agentes maiores, é preciso que estes tenham conhecimento da menoridade de algum ou alguns dos participantes.


4.7) Extorsão Mediante Sequestro Qualificada - art. 159, §1º: 

A nova lei não alterou a redação do art. 159, §1º, que qualifica a extorsão mediante sequestro "se o crime é cometido por bando ou quadrilha".

Uma corrente minoritária sustenta que o afastamento das denominações "quadrilha" e "bando" revogou a qualificadora. Tem prevalecido, todavia, que ela continua aplicável, pois a antiga quadrilha ou bando corresponde à atual associação criminosa.


4.8) Associação Criminosa Qualificada pela Hediondez - Lei nº 8.072/90, art. 8º

A lei dos crimes hediondos qualifica o crime do CP, art. 288, quando sua finalidade for a prática de crimes hediondos ou equiparados.


4.9) Delação Premiada - Lei nº 8.072/90, art. 8º, Parágrafo único

Na associação qualificada pela hediondez de seus crimes, a lei prevê redução de pena de 1/3 a 2/3 em favor do associado que denunciar a associação à autoridade, permitindo seu desmantelamento. Portanto, não basta a delação, sendo necessário que ela produza o resultado de desmantelar, ou seja, desmanchar, fazer desaparecer a associação.

Se a delação não produzir esse resultado, não se aplica a redução de pena, mas apenas a atenuante genérica do CP, art. 65, III, d; e art. 66.


4.10) Concurso de Crimes

O agente que pertence a duas associações criminosas distintas, formadas por pessoas diferentes, responde por dois crimes em concurso material. 
  • Questão da associação criminosa e dos crimes qualificados ou agravados pelo concurso de agentes (ex.: roubo, extorsão, furto, estupro, etc.): uma corrente minoritária sustenta que neste caso a qualificadora ou majorante não incide, pois haveria bis in idem: pela mesma união de vontades ele seria punido pela prática do art. 288 e pela majorante ou qualificadora. A corrente majoritária, inclusive no STF, é a de que não há bis in idem, respondendo os agentes por associação criminosa e também pelo outro crime qualificado ou majorado. Isto se dá porque o crime de associação criminosa já estava consumado quando da prática do outro crime, o qual poderia ter sido praticado por um só, e pelo qual só responderão os membros da associação que dele participarem. 
  • O mesmo raciocínio se aplica à associação criminosa armada e ao roubo majorado pelo emprego de arma.

4.11) Distinções

Além do crime do CP, art. 288, a legislação penal tipifica outras associações de pessoas para a prática de crimes de determinada natureza.

a) Constituição de milícia privada - CP, art 288-A: estudado no item 5) adiante.

b) Organização criminosa - Lei nº 12.850/13, art. 2º: associação de 4 ou mais pessoas para infrações penais transnacionais ou com pena máxima superior a 4 anos;

c) Associação para o tráfico - Lei nº 11.343/06, art. 35: associação de 2 ou mais pessoas para os crimes dos arts. 33, caput, 34, 35 e 36;

d) Associação para a prática de genocídio - Lei nº 2.889/06, art. 2º: associação de 4 ou mais pessoas para a prática de genocídio.


5) Constituição de Milícia Privada - art. 288-A, introduzido pela Lei nº 12.720/12

A conduta consiste em constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão para praticar qualquer dos crimes do CP.

Trata-se de uma modalidade especial de associação criminosa. No entanto, o legislador deixou de definir em que consiste cada uma destas modalidades de associação de pessoas. O novo tipo do art. 288, cujo título é "associação criminosa", define em que esta consiste, assim como a lei anterior definia quadrilha ou bando.

O art. 288-A deixa ao intérprete a tarefa de definir o que é organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão, o que viola o próprio princípio da tipicidade penal.


5.1) Sujeito Ativo

Qualquer pessoa. É crime de concurso necessário. No entanto, o legislador omitiu o número mínimo de participantes de cada uma das entidades mencionadas. Tem prevalecido que esse delito é uma ramificação, uma espécie de associação criminosa, e portanto o número mínimo é o mesmo, ou seja, 3.


5.2) Sujeito Passivo

A coletividade. 


5.3) Tipo Objetivo

O tipo é misto alternativo, prevendo as condutas de constituir (fundar, inaugurar), organizar (dar estrutura, repartir tarefas, etc.), integrar (fazer parte), custear (fornecer dinheiro para cobrir despesas) ou manter (contribuir de qualquer modo para sua persistência).

As formas de associação são:

a) Organização paramilitar: é uma associação civil armada, com estrutura semelhante à militar, com hierarquia, planejamento, etc.;

b) Milícia particular: é um grupo armado que se afirma com a finalidade de dar segurança às comunidades mais carentes;

c) Grupo: prevalece que o legislador quis se referir aos chamados "grupos de extermínio";

d) Esquadrão: é uma unidade, uma parcela de qualquer das entidades precedentes.


5.4) Tipo Subjetivo

É o dolo específico de praticar crimes previstos no CP, com o ânimo de permanência.


5.5) Consumação

Ocorre com a prática de qualquer das condutas, independentemente da prática de outros crimes pelas entidades. Não se admite tentativa, como na associação criminosa.



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