sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

21 - Crimes contra a Fé Pública - Falsificação de Documento


Crimes contra a Fé Pública

1) Introdução

Fé pública é a confiança depositada pelas pessoas os objetos aos quais o direito confere autenticidade, como moeda, documentos, etc.

Certos objetos fazem prova por si mesmos daquilo que eles significam, pois sua veracidade é presumida, dispensando-se outras provas (ex.: a cédula de identidade basta por si mesma para provar a identidade de alguém; isso significa que esse documento goza de fé pública; uma eventual falsificação da cédula de identidade, portanto, ofende a fé pública). Por isso, de modo geral, os crimes contra a fé pública são crimes de falso.

Todos os crimes de falso têm os seguintes elementos:

a) Dolo: não há falso culposo. O dolo inclui:

  • Aciência da falsidade; e 
  • A vontade de imitar a verdade.


b) Imitação da verdade: objetivamente, a coisa falsa é semelhante à verdadeira, podendo passar por ela. Há quatro modos de imitar a verdade:

  • Contrafação: consiste em criar materialmente, do nada, a coisa falsa semelhante à verdadeira (ex.: tomar papel em branco e imprimir uma nota falsa de dinheiro);
  • Alteração: consiste em tomar uma coisa verdadeira e modificá-la, de modo que ela signifique algo diverso do original, acrescentando-lhe elemento (ex.: tomar cheque verdadeiro de 100 e transforma-lo em cheque de de 100.000);
  • Supressão: consiste em tomar uma coisa verdadeira e retirar dela elementos relevantes (ex.: apagar uma cláusula de um contrato);
  • Simulação: significa fazer uma coisa materialmente verdadeira, a qual transmite uma ideia falsa (ex.: oficial de justiça certifica falsamente que não encontrou o réu para citá-lo).
  • As três primeiras formas correspondem à falsidade material. A última corresponde à falsidade ideológica.
c) Dano potencial: é preciso que a coisa falsa tenha a capacidade de causar algum dano, de qualquer natureza. Não é preciso que ela tenha causado o dano, bastando a potencialidade. Para que esta potencialidade esteja presente, é preciso que a falsidade não seja grosseira. Não há crime de falso quando a imitação da verdade é grosseira, por falta de potencialidade de dano (ex.: nota falsa de 3 reais).

Considera-se grosseira a falsidade perceptível a olho nu pelo comum das pessoas, pelo chamado "homem médio". Não é preciso, para que haja crime, que a imitação seja tão perfeita que somente peritos possam identificá-la; basta que ela seja apta a enganar o homem médio.

Sem em um caso concreto, a falsidade, embora grosseira, venha a enganar e causar dano a uma pessoa muito desatenta, ou de pouca instrução, o agente não responderá por falso, mas eventualmente por outro crime, como estelionato. Neste sentido, a Súmula nº 73-STJ afirma que a utilização de papel moeda grosseiramente falsificado não configura crime de moeda falsa, mas sim de estelionato.


2) Espécies de Falsidade

a) Falsidade material ou externa: é aquela que recai sobre o corpo da coisa, sobre sua matéria. Ela ocorre através de contrafação, alteração ou supressão. Ela é constatável através de perícia.

b) Falsidade ideológica: é a falsidade do conteúdo, a ideia transmitida pela coisa. Materialmente a coisa é verdadeira, mas a mensagem que ela transmite é falsa (ex.: médico atesta doença que o paciente não tem). A falsidade ideológica se dá através de simulação. Ela não é constatável através de perícia da coisa, exigindo outros meios de provas;

c) Falsidade pessoal: é aquela que tem por objeto os dados de identificação de uma pessoa, como nome, filiação, naturalidade, etc. (ex.: alguém se faz passar por outra pessoa para fazer um concurso);

d) Falsidade documental: é aquela cujo objeto material é um documento. Documento é a peça escrita que condensa graficamente o pensamento de alguém, e que tem aptidão por si mesmo para fazer prova de um fato ou de um ato juridicamente relevante. Todo documento, para fins penais, deve ter os seguintes elementos:
  • Forma escrita: as gravações de sons e imagem não são documentos para fins penais. Da mesma forma pinturas, desenhos e fotografias isoladas. No entanto, se essas fotografias, pinturas ou desenhos estiverem inseridos em um documento, elas são documento (ex.: quem troca a fotografia de uma cédula de identidade ou altera uma planta em contrato relativo a um imóvel pratica crime de falso documental). A fotocópia do documento será considerada documento se autenticada, nos termos do CPP, art. 232, Parágrafo único.
  • Elaborado por pessoa determinada: é preciso que o autor do pensamento expresso seja identificado através de assinatura ou outro meio. Escritos anônimos não são documentos para fins penais;
  • Conteúdo com relevância jurídica: a ideia deve ser algo que tenha repercussão no direito. Portanto, o papel assinado em branco, ou que tenha declaração irrelevante ou incompreensível não é documento. O escrito que contenha um negócio jurídico inexistente ou absolutamente nulo para o direito não é documento, tendo em vista sua total ineficácia jurídica (ex.: casamento entre irmãos; escritura de compra e venda sem assinatura, etc.). Por outro lado, um escrito que traduza um negócio jurídico relativamente nulo ou anulável é documento, pois produz efeitos enquanto não declarada a nulidade (ex.: contrato assinado por relativamente incapaz sem assistência);
  • Eficácia probatória: para que haja documento, é preciso que o escrito seja apto a fazer prova de seu conteúdo por si mesmo. Por isso, a jurisprudência não considera documentos os escritos que contenham declarações sujeitas a averiguação (ex.: alegações contidas em requerimentos, ou em petições de advogados, ou em boletins de ocorrência; declaração de que o falecido não deixou bens; atestados de pobreza ou residência, etc.).

2) Falsidade material de Documento Público - art. 297

É a mais grave das falsidades documentais, pois o documento público falso pode causar dano a um número maior de pessoas.

2.1) Sujeito Ativo

Qualquer pessoa, funcionário público ou particular. Se o agente é funcionário público e pratica a falsidade valendo-se do cargo, a pena é aumentada em 1/6 - §1º.


2.2) Sujeito Passivo

É o Estado e eventual particular lesado. 


2.3) Tipo Objetivo

O objeto material é o documento público. Considera-se público o documento que é expedido por funcionário público no exercício das funções (ex.: certidões, cédulas de identidade, CNH, etc.).
  • Documento particular com falso reconhecimento de firma continua documento particular. No entanto, o reconhecimento é público. Portanto, se a falsificação recai sobre o reconhecimento, ela configura falsificação de documento público.
  • A fotocópia de documento particular com autenticação falsa é documento público na parte da autenticação, mas não no restante.
  • Certidões, traslados de documentos públicos são documentos públicos.
  • Documentos públicos por equiparação - §2º: são documentos particulares cuja falsificação, por sua relevância, é punida como falsificação de documento público. Por isso eles são chamados de equiparados a públicos. Eles estão no rol do §2º, destacando-se todos os títulos de crédito ao portador ou transmissíveis por endosso (cheques, promissórias, etc.), os documentos emanados de paraestatais, as ações de S/A, livros mercantis e testamentos particulares. O testamento público e o cerrado são documentos públicos por natureza, e o particular é documento público por equiparação. A falsificação do testamento é crime independentemente da morte do doador ou do uso do testamento.

2.4) Núcleos do Tipo

O tipo prevê 3 condutas:

a) Falsificar no todo: significa criar, tirar do nada, o documento. Corresponde à contrafação (ex.: o agente toma folha em branco e imprime CNH);

b) Falsificar em parte: esta descrição abrange duas condutas:
  • Tomar uma base verdadeira e criar um documento falso que antes não existia (ex.: subtrair da repartição pública um formulário em branco verdadeiro, preencher e assiná-lo falsamente.) Neste caso, antes da conduta não havia documento. O falso resultante é apenas parcial, cujo formulário era verdadeiro;
  • Também configura falsificar em parte tomar documento público verdadeiro e introduzir elementos novos sem alterar os dizeres originais, de forma que os novos elementos sejam individualizáveis em relação aos anteriores (ex.: aproveitar-se de um espaço em branco de contrato público verdadeiro e inserir uma cláusula falsa; introduzir endosso falso em cheque verdadeiro).
c) Alterar documento público verdadeiro: o agente toma o documento verdadeiro e acrescenta ou suprime elementos de seus dizeres originais (ex.: troca palavras, rasura, etc.).


2.5) Tipo Subjetivo

É o dolo genérico, ou seja, o crime se configura qualquer que seja a finalidade do agente.


2.6) Consumação

Ocorre com a falsificação ou alteração, independentemente do uso ou da produção de dano pelo documento. Nem mesmo é preciso, para a consumação, que o documento deixe a esfera de disponibilidade do agente (ex.: se a polícia em uma busca e apreensão descobre um documento falsificado pelo agente na casa dele, ele responderá pelo crime consumado, ainda que jamais o documento tenha sido utilizado ou retirado dali).

Discute-se a possibilidade de tentativa. A corrente majoritária afirma que ela é possível (ex.: agente inicia a falsificação, mas é impedido de prosseguir quando o documento ainda não atingira a semelhança com o verdadeiro; ou ainda quando ele encomenda o documento ao falsário mas não chega a ser feito). A corrente minoritária sustenta a inexistência da tentativa, isto é, ou o documento falso atingiu a semelhança com o verdadeiro - imitatio veri - e o crime está consumado, ou a conduta é atípica, pois o falso é grosseiro.


2.7) Concurso de Crimes

a) Falsificação de vários documentos: se o mesmo agente, no mesmo contexto, falsifica mais de um documento com uma só finalidade, ele responde por um só crime, pios a fé pública é afetada apenas uma vez (ex.: falsificação de certificado de registro e guia de IPVA para vender veículo furtado). No entanto, se as falsificações tiverem finalidades diversas, haverá um crime para cada documento falsificado (ex.: falsificar escritura para vender a casa e passaporte para fugir do Brasil);

b) Falso e uso de documento falso: na hipótese em que um mesmo agente falsifica e utiliza o mesmo documento, ele responde por apenas um crime. A corrente majoritária entende que ele responde pelo falso, o qual absorve o crime de uso do art. 304, pois este constitui mero exaurimento do falso. A corrente minoritária sustenta que ele responde apenas pelo uso do art. 304, que é o crime-fim, o qual absorve o falso, que é crime-meio;

c) Falso e estelionato: frequentemente, a falsificação de documento tem a finalidade de possibilitar a prática de um estelionato. Se o mesmo agente falsifica ou utiliza o documento para praticar estelionato, há quatro posições:

  • O agente responde só pelo estelionato, que é o crime-fim, o qual absorve o falso ou o uso, que são crimes-meio;
  • O agente responde apenas pelo falso ou pelo uso, que são crimes mais graves, os quais absorvem o estelionato, que é crime menos grave e constitui mero exaurimento do falso ou do uso. O crime de menor gravidade não pode absorver o crime mais grave;
  • O agente responde pelo falso ou pelo uso em concurso material com o estelionato. Essa corrente argumenta que as condutas são diversas e atingem bens jurídicos diferentes: a fé pública e o patrimônio. Portanto, uma não pode ser absorvida pela outra (MP);
  • O agente responde em concurso formal por uso de documento falso (o qual, para esta corrente, absorve o falso) e por estelionato. Esta corrente argumenta que há uma conduta só na utilização do documento e na obtenção da vantagem ilícita, o que caracteriza o concurso formal.
  • O que tem prevalecido é a solução contida na Súmula nº 17-STJ. Ela distingue o falso que se exaure no estelionato daquele que não se exaure. O falso se exaure no estelionato quando o documento falsificado é consumido por ele, não podendo ser utilizado para outros crimes (ex.: o agente falsifica um cheque e o emprega no estelionato. Aquele cheque não pode ser usado para outros crimes). Nessa hipótese, a Súmula adota a primeira corrente, respondendo o agente apenas por estelionato, que absorve o falso. 
  • O falso não se exaure no estelionato quando, depois dele, o documento falso ainda pode ser utilizado para outros crimes (ex.: o agente falsifica uma cédula de identidade e a utiliza para estelionato). Deduz-se da súmula que não há absorção, prevalecendo que se aplica a terceira corrente, respondendo o agente pelos dois crimes em concurso material. 

2.8) Figuras Equiparadas - §§ 3º e 4º

A Lei nº 9.983/00 acrescentou ao art. 297 crimes de falso contra a Previdência Social, da competência da Justiça Federal. Trata-se de impropriedade do legislador, pois todas as condutas ali previstas configuram falsidade ideológica, e não material: inserir declarações falsas em folha de pagamento de empresa para prestar informes à previdência, em CTPS, ou em qualquer outro documento relativo às obrigações da empresa para com a Previdência.

O §4º prevê a forma omissiva dessas falsidades ideológicas, consistente em omitir nesses documentos informações que deveriam constar.


3) Falsificação Material de Documento Particular - art. 298

Trata-se de crime idêntico ao do art. 297, exceto na pena, que é mais branda, e no objeto material, que é o documento particular.

O conceito de documento particular é obtido por exclusão. Consideram-se particulares todos os documentos que não são públicos, nem são equiparados a públicos, na forma do art. 297, §2º.

No mais, o que se aplica ao crime anterior, aplica-se a este.



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