quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

20 - Crimes contra o Patrimônio - Receptação e Imunidades


1) Receptação - CP, art. 180

Trata-se da conduta de quem adquire, recebe, transporta ou oculta coisa que sabe ser produto de crime ou influi para que terceiro de boa-fé a adquira, receba ou oculte.

A receptação é crime acessório (ou crime de fusão, ou crime parasitário), pois sua configuração pressupõe a existência de outro crime anterior.


1.1) Objeto Jurídico

É o patrimônio da vítima do crime antecedente, pois a receptação afasta ainda mais o bem dela, dificultando sua recuperação.


1.2) Objeto Material

É a coisa objeto do crime antecedente. A receptação de produto de contravenção é atípica.

A conduta anterior deve ser criminosa, ou seja, típica e antijurídica. Se houve uma excludente de antijuridicidade, não há receptação (ex.: morrendo de fome, o agente furta joia e a troca por comida - o furto famélico não é crime (estado de necessidade), razão pela qual o comprador não pratica receptação).

O crime anterior pode não ser contra o patrimônio. É possível, assim, haver receptação de produto de peculato, contrabando, corrupção, etc.

O crime antecedente pode ser inclusive receptação: trata-se da chamada "receptação em cadeia" (ex.: o sujeito rouba relógio, e o vende a outro, o qual o vende a outro; este último praticou receptação de bem receptado).

Embora a lei não afirme expressamente, a coisa deve ser alheia. A receptação de coisa própria é atípica (ex.: vítima que compra do ladrão seu relógio roubado).

Discute-se se o bem imóvel pode ser objeto de receptação. A corrente minoritária entende que sim, pois a lei não fala em "coisa móvel". No entanto, prevalece que não, pois a receptação pressupõe o deslocamento da coisa do proprietário até o receptador.


1.3) Autonomia do Crime de Receptação

A configuração da receptação exige apenas que esteja demonstrada a existência do crime antecedente, não sendo necessária a identificação ou a punibilidade de seu autor - art. 180, §4º. Portanto, o autor da receptação responderá pelo crime ainda que o autor do crime antecedente seja desconhecido, ou menor, ou tenha tido extinta a punibilidade, salvo na hipótese de anistia ou abolitio criminis do crime anterior. Isto porque estas duas causas extintivas da punibilidade "apagam" o crime anterior, tornando-o inexistente, e consequentemente também apagam a receptação.

A prova da existência do crime anterior pode ser feita incidentalmente no processo pela receptação, não sendo necessário que haja inquérito ou ação penal pelo crime anterior.


1.4) Sujeito Ativo

Na forma do caput, o crime é comum, podendo ser sujeito ativo qualquer pessoa. Na forma do §1º, o crime é próprio, pois exige-se que o sujeito ativo seja comerciante ou industrial.

O autor, coautor ou partícipe do crime antecedente não podem ser sujeito ativos de receptação do seu produto (ex.: o dono de um desmanche encomenda a um assaltante o roubo de determinado veículo, e depois o adquire).

O advogado pode ser autor de receptação, caso ele receba do cliente coisa que sabe ser produto de crime. 


1.5) Sujeito Passivo

A vítima da receptação é mesma vítima do crime antecedente, pois este novo crime afasta ainda mais a coisa de seu dono, dificultando a recuperação.


1.6) Espécies de Receptação

1.6.1) Dolosa

a) Simples Própria ou Imprópria:
  • Própria - art. 180, caput, primeira parte: trata-se de tipo misto alternativo, que prevê cinco condutas: 
  • Adquirir: significa obter a propriedade de qualquer modo, através de compra, permuta, doação, etc., com ânimo definitivo; 
  • Receber: significa apossar-se da coisa de forma temporária, sem ânimo definitivo (ex.: receber carro roubado para fazer um passeio); 
  • Transportar: significa levar de um local para outro (ex.: transportar carros roubados em cegonha); 
  • Conduzir: significa dirigir um veículo; 
  • Ocultar: normalmente, o agente oculta depois de receber, mas pode ocultar coisa recebida por outrem (ex.: abre porta de casa para que alguém ali oculte objeto roubado). 
Objeto Material: é a coisa produto de crime, não havendo receptação de produto de contravenção. A conduta poderá configurar crime da lavagem de dinheiro.

Elemento subjetivo: é apenas o dolo direito, pois o agente "sabe ser produto de crime" a coisa. Não se admite nesta forma de receptação o dolo eventual. Para o STF, se o agente desconfia que a coisa é produto de crime e pratica a conduta assumindo o risco dessa origem, ele responde por receptação culposa. O dolo deve ser precedente ou concomitante à conduta. Assim, por exemplo, se o agente recebe a coisa de boa-fé, e somente após vem a saber de sua origem, não a restituindo, sua conduta é atípica, salvo se depois disso ele ocultar a coisa. Nesta hipótese, ele adquiriu, recebeu, etc. sem saber que era produto de crime. No entanto, quando ocultou ele já sabia dessa origem.

Consumação: trata-se de crime material, que se consuma quando a coisa entra na posse do agente, ou quando ele a oculta. Nas formas "adquirir" e "receber", o crime é instantâneo. Nas formas "transportar", "conduzir" e "ocultar", o crime é permanente, pois a consumação se protrai, se prolonga enquanto o agente está transportando, conduzindo ou ocultando. A tentativa é possível em todas as formas, receptação dolosa simples imprópria - art. 180, caput, parte final. Nesta modalidade, o agente, de má-fé, age como intermediário, influindo para que um terceiro de boa-fé adquira, receba ou oculte a coisa (ex.: ciente de que um relógio é roubado, o agente convence um terceiro de que ele tem origem lícita, e leva este terceiro a comprá-lo. A conduta de influir para que terceiro de boa-fé transporte ou conduza a coisa é atípica, pois esses dois verbos não estão na parte final do dispositivo. O terceiro deve estar de boa-fé, ou seja, ele deve ignorar a origem da coisa. Se o terceiro estiver de má-fé, ciente dessa origem, e o agente o influenciar para adquirir, receber ou ocultar a coisa, ambos responderão por receptação própria, sendo o terceiro na qualidade de autor, e quem o influenciou na condição de partícipe.
  • Imprópria - art. 180, caput, parte final
Elemento Subjetivo: também é o dolo direto.
Consumação: prevalece que o crime é formal, consumando-se com a mera conduta de influir, ainda que o terceiro não adquira, nem receba, em oculte a coisa. Não é preciso que o agente convença o terceiro, bastando que sua conduta seja idônea a convencer. Prevalece que não cabe tentativa; se o agente praticou o ato de influenciar, já consumou o crime. Uma corrente minoritária sustenta a possibilidade de tentativa na conduta não presencial (ex.: o agente envia uma carta influenciando terceiro, mas esta não chega).
b) Qualificada
  • Pela atividade do agente - art. 180, §1º: trata-se da receptação praticada no exercício de atividade comercial ou industrial. 
Sujeito ativo: trata-se de crime próprio, pois o agente deve ser comerciante ou industrial. Não se exige que essa atividade seja legal, regularizado, pois o §2º dispõe que pode ser qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, até mesmo em residência. Deve haver, porém, uma habitualidade no exercício do comércio ou indústria. 
Tipo objetivo: também é tipo misto alternativo. Além das 5 condutas do caput, a lei acrescenta "ter em depósito", "desmontar", "montar", "remontar", "vender", "expor à venda", e de qualquer forma utilizar. Esse dispositivo foi acrescentado pela Lei nº 9.426/96 tendo em vista particularmente os desmanches de automóveis. 
Tipo subjetivo: é o dolo, o qual é expresso da seguinte forma "coisa que deve saber ser produto de crime". A expressão "deve saber" indica o dolo eventual, em que o agente apenas desconfia da origem ilícita da coisa, mas pratica a conduta, assumindo o risco desta origem. Como o legislador não utilizou a expressão "sabe ou deve saber", uma corrente minoritária sustenta que esta receptação qualificada só seria típica na hipótese do dolo eventual. Para essa corrente, o dolo direto configuraria a receptação simples do caput. Por isso, os adeptos dessa corrente sustentam a inconstitucionalidade deste parágrafo primeiro, por violação aos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena, já que ele puniria a conduta menos grave, em que o agente apenas desconfia da origem da coisa, de forma muito mais severa do que a conduta mais grave, em que o agente sabe da origem da coisa. No entanto, prevalece amplamente, inclusive no STJ, o entendimento de que o dispositivo é constitucional, pois a expressão "deve saber" do §1º indica que na receptação qualificada é suficiente o dolo eventual, não se afastando o dolo direto. No caput, só se admite o dolo direto, no §1º basta, o dolo eventual. A expressão "deve saber" deve ser lida como "ao menos deve saber" ser produto de crime. 
  • Pela natureza do objeto - art. 180, §6º: Trata-se da receptação de bem público, ou seja, da União, Estado, município ou empresa concessionária de serviços públicos, ou sociedade de economia mista. É preciso que o agente saiba ou assuma o risco dessa procedência. A lei prevê que nessa hipótese será dobrada a pena do caput. Portanto, isso só se aplica à receptação simples, e não à qualificada pela atividade do agente (ex.: se o dono de um desmanche adquire veículo da prefeitura produto de crime, não se aplica a ele o §6º.

c) Privilegiada - art. 180, §5º, parte final: na receptação dolosa, aplica-se a mesma regra do furto privilegiado do art. 155, §2º, ou seja, se a coisa é de pequeno valor e o receptador é primário, pode-se substituir a pena de reclusão por detenção, diminui-la de 1/3 a 2/3, ou aplicar somente multa.

Uma corrente sustenta que a colocação da receptação privilegiada no §5º faz com que ela se aplique apenas à receptação simples e à receptação qualificada do §1º, que vem antes. Esse privilégio não se aplicaria à receptação de coisas públicas do §6º, que vem depois. No entanto, tendo em vista que o STJ hoje tem admitido o furto privilegiado qualificado, prevalece que o privilégio da receptação também se aplica ao §6º.


1.6.2) Culposa - art. 180, §3º

Trata-se do único crime patrimonial culposo.

Diversamente do que normalmente faz, o legislador não criou um tipo com a expressão "se a receptação é culposa". Ele descreveu o que configura a culpa. As condutas são adquirir ou receber. Todas as outras condutas dos §§ anteriores são atípicas na forma culposa.

A lei aponta circunstâncias que tornam a aquisição ou o recebimento da coisa culposos, pois configuram imprudência ou negligência daquele que adquiriu ou recebe. Ele não sabe da origem da coisa, mas estas circunstâncias lhe imporiam uma cautela maior ao adquirir ou receber. Essas circunstâncias, que são indícios da origem ilícita da coisa, são três:
  • A natureza da coisa (ex.: coisa que tem gravado o nome do dono, relíquias históricas, obra de arte de valor, etc.);
  • Desproporção entre o valor e o preço; a coisa é oferecida por preço muito inferior ao valor real;
  • A condição de quem oferece a coisa (ex.: coisa vendida por uma criança, por um mendigo, por um viciado em entorpecentes, etc.).
O crime se consuma com o recebimento ou aquisição. Como se trata de crime culposo, não se admite tentativa.
Perdão judicial na receptação culposa - art. 180, §5º, primeira parte: o Juiz pode deixar de aplicar a pena se o autor da receptação culposa for primário. Não se exige que a coisa tenha pequeno valor

1.7) Distinção

A receptação não se confunde com o favorecimento real do art. 349, em que o agente presta auxílio ao criminoso para tornar seguro o proveito do crime. Na receptação, o agente tem o dolo de obter uma vantagem patrimonial para si ou para outrem. No favorecimento real, que é crime contra a Administração da Justiça, o dolo do agente não é obter vantagem, mas auxiliar o criminoso a tirar proveito de seu delito.


1.8) Concurso de Crimes

Se o agente efetua uma só compra de vários objetos produtos de crimes diferentes, ele pratica uma só receptação (ex.: ladrão de relógios vende de uma só vez ao comerciante 10 relógios roubados de vítimas diferentes). Se o agente efetua compras diversas, cada compra configura uma receptação.


2) Imunidades nos Crimes Contra o Patrimônio - art. 181 a 183

Nos crimes patrimoniais entre familiares, praticados sem violência ou grave ameaça, a lei cria imunidades objetivando priorizar a paz familiar. Essas imunidades podem ser:


2.1) Imunidades em Espécie

a) Absolutas ou substanciais - art. 181: elas têm natureza jurídica de escusas absolutórias, ou seja, a lei confere ao agente a isenção de qualquer sanção penal; nem mesmo IP pode ser instaurado. Essas imunidades, porém, não afastam as consequências civis da conduta, pois o agente permanece obrigado a restituir a coisa ou reparar o dano. Hipóteses:
  • Crime praticado contra cônjuge, na constância da convivência conjugal: não basta o casamento religioso, devendo haver casamento civil. Considera-se a data da conduta (ex.: se sujeito casa com mulher e depois se casa com ela, a imunidade não incide. Se ele furta a esposa, e depois se divorcia, a imunidade incide). A mera separação de fato não exclui a imunidade. Discute-se se essa imunidade se aplica à união estável. Uma corrente afirma que não, pois união estável não é casamento; outra corrente, majoritária, entende que a imunidade se aplica, por interpretação extensiva do dispositivo, já que a CF/88, art. 226, §3º, deu à união estável a situação de entidade familiar;
  • Crime praticado em prejuízo de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural: a hipótese abrange os parentes em linha reta, qualquer que seja o grau (ex.: neto contra avô, mãe contra filha, etc.). O vínculo por afinidade não enseja a imunidade (ex.: genro contra sogra).

b) Relativas ou processuais - art. 182: nestas hipóteses em que o vínculo familiar é menos próximo, existe o crime e a possibilidade de imposição de pena, mas a ação penal é pública condicionada a representação do ofendido:
  • Crime em prejuízo de cônjuge "desquitado ou judicialmente separado": a palavra desquitado constava do antigo CC e foi abolida pela lei do divórcio - Lei nº 6.515/77. O desquite correspondia à separação judicial transitada em julgado, enquanto a separação judicial correspondia à medida cautelar de separação de corpos. Hoje, deve-se entender que a imunidade se aplica aos cônjuges separados judicialmente ou por separação de corpos. Não há nenhuma imunidade para os cônjuges divorciados;
  • Crime praticado em prejuízo de irmão legítimo ou ilegítimo: o dispositivo abrange tanto os irmãos unilaterais como os bilaterais, assim como aos irmãos adotivos.
  • Crime contra cunhado: se a irmã é casada com o cunhado em comunhão universal de bens, a imunidade incide, pois a irmã também é vítima. Se a comunhão for parcial, a imunidade só incidirá se recair sobre bem comum do casal. Se o regime é de separação de bens, não há imunidade; 
  • Crime praticado contra tio ou sobrinho com que o agente coabita: não basta o parentesco. É preciso a coabitação, ou seja, que eles habitem na mesma casa de modo permanente. A imunidade alcance os tios-avós e sobrinhos-netos;
2.2) Exclusão das Imunidades - art. 183

Nenhuma das imunidades se aplica nas seguintes hipóteses:

a) Crimes praticados mediante violência ou grave ameaça à pessoa;

b) Ao terceiro que participa do crime (ex.: marido e amigo furtam carro da mulher; a imunidade só se aplica ao marido);

c) Quando o crime é cometido contra pessoa idosa: esse dispositivo foi acrescentado pelo estatuto do idoso - Lei nº 10.741/83, art. 95.



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