sexta-feira, 22 de agosto de 2014

15 - Do Crime Consumado e Tentado, da Desistência e dos Arrependimentos


1) Crime Consumado

A previsão do delito consumado está inserida no CP, art. 14, I. O delito será consumado quando nele estiverem reunidos todos os elementos de sua definição legal, isto é, a tipicidade vai estar completa. O agente irá realizar de maneira escorreita o núcleo do tipo penal, alcançando assim o "resultado" previsto em lei. 

Não existe grandes diferenças entre o chamado crime consumado e o delito exaurido ou esgotado, que é aquele em que o agente vai além da consumação. O crime exaurido é aquele que irá surtir efeitos de ordem lesiva após a conduta criminosa ter sido realizada. 

No plano da tipicidade, não haverá graves considerações. Entretanto, com relação à punibilidade, haverá consequências. O crime exaurido é mais grave do que o delito consumado. Essa situação é avaliada na primeira fase da dosimetria da pena, que é a fase das circunstâncias judiciais, única passagem obrigatória, e que está prevista no art. 59. Por conta disso, o Juiz poderá, depois de fundamentar sua decisão, sair do limite mínimo traçado nas margens penais.

A regra é que o exaurimento seja avaliado na primeira fase da dosimetria, mas em determinados delitos, como na corrupção passiva circunstanciada - art. 317, §1º, o exaurimento será encarado como causa de aumento de pena, ou seja, na terceira fase da dosimetria. Sendo assim, o Magistrado está autorizado a ultrapassar o limite máximo de pena previsto em lei.

Ressalte-se que a ordem das fases da aplicação da pena é - art. 68:

  • Fixação da pena base - art. 59;
  • Em seguida, situações atenuantes -  arts. 65 e 66, e agravantes - arts. 61, 62. A pena será atenuada ou agravada dentro das margens penais;
  • Por último, causas de diminuição e aumento de pena: estão previstas tanto na parte geral do CP como ao longo da parte especial, como parágrafos de artigos definidores de tipos penais. A pena será aumentada ou diminuída para além das margens penais.
Margens penais são os limites mínimos e máximos de uma pena cominada (ex.: art. 121, reclusão de 6 a 20 anos):

  • A margem mínima é 6, e a máxima 20 anos;
  • As atenuantes e agravantes só podem incidir dentro de tais limites, razão pela qual elas não adotam proporções matemáticas, e o juiz irá dosá-las amparado no art. 59. Há uma discussão se seria essa atividade do juiz discricionária ou vinculada. Digo que é vinculada no sentido de que o juiz deve agravar ou atenuar, mas discricionária (prudente arbítrio) para estabelecer o quantum;
  • As causas de aumento e diminuição podem tornar a pena menor que 6 ou maior que 20 anos, e por isso podem adotar proporções matemáticas que irão extrapolar as margens, como 1/3, 2/3.


2) Crime Tentado

Previsto no art. 14, II, o delito será tentado quando, iniciada a execução, o crime não chegar a se consumar, em virtude de circunstâncias alheias à vontade do agente. Significa dizer que não se alcança a consumação devido a algo que está fora do intento do agente, sendo algo alheio à sua vontade. 

Segundo Zaffaroni, a tentativa é um delito incompleto, mas com uma tipicidade subjetiva completa. Sendo assim, a tentativa vai possuir um defeito na tipicidade objetiva, e, por conta desse defeito, surgiu a expressão "tipo subordinado", na medida em que não é punida de maneira autônoma. Em razão disso, será necessário conjugar o tipo da parte especial ou da legislação especial, isto é, o delito que o agente queria cometer, em conjunto com a parte geral, nos termos do art. 14, II.

A tentativa funciona como uma causa obrigatória de diminuição de pena: reconhecido o delito tentado, o Juiz está obrigado a diminuir a sanção, diminuição essa que irá variar de um patamar entre 1/3 e 2/3, de maneira inversamente proporcional ao iter criminis
  • Iter criminis ou caminho do crime: são as fases pelas quais o agente passa para consumar o delito. É por meio desse trajeto que irá se verificar se um delito está ou não consumado. A doutrina é dividida acerca da quantidade de fases que o iter criminis possui, prevalecendo o entendimento de que são 4 - cogitação, preparação, execução e consumação - muito embora outra corrente afirme serem cinco fases, inserindo o exaurimento. Ora, se iter criminis representa as fases para consumar o delito, e o exaurimento está fora, indo além da consumação, ele não pode ser incluído como fase;
  • Cogitação: nessa fase, o agente tem a ideia de praticar o delito. Tudo não sai do plano ideológico, estando ligado ao plano interno da mente do agente. Não se pune, em direito penal, a cogitação do delito; 
  • Atos preparatórios: nessa fase, a vontade do agente ligada à pratica do delito começa a se exteriorizar por meio da preparação do crime. Dependendo do delito, o ato preparatório se torna uma fase necessária à sua execução. A regra é que não se puna, em direito penal, a preparação do delito, mas há exceções (ex.: art. 288 - quadrilha ou bando, sendo atualmente 3 ou mais sujeitos para cometer crimes - Lei nº 12.850/13; art. 291 - petrechos para falsificação de moeda; 286 - incitação ao crime); 
  • Execução: nessa fase, o agente dá início à prática do delito. É por meio dessa fase que se distingue crime tentado de delito consumado, pois o legislador assim registrou: "... quando iniciada a execução..." - art. 14, II. O ato de execução deve ser inequívoco (se dirige à lesão do bem jurídico, em que o agente não pode ter dúvida quanto ao objetivo que quer alcançar) e idôneo (ou eficaz, capaz de gerar lesão ao bem jurídico); 
  • Consumação: agora não há mais margem alguma, pois o agente concretiza a tipicidade.  
  • Vale lembrar que essas fases não são obrigatórias, podendo o agente migrar direto para a consumação sem percorrer todo o trajeto;

2.1) Elementos da Tentativa

Para que haja tentativa é necessária a ocorrência dos seguintes elementos:

a) Início da execução;

b) Não consumação devido a circunstâncias alheias à vontade do agente;

c) Dolo: não existe tentativa sem dolo.


2.2) Punibilidade na Tentativa

Duas teorias surgiram com a finalidade de explicar a sanção nos delitos tentados. São as seguintes:

a) Teoria subjetiva: essa teoria está ligada à intenção do agente. Leva em consideração seu desejo, razão pela qual pune o crime tentado da mesma forma que o delito consumado. A regra é que o nosso legislador não utilize essa teoria, exceto nos crimes denominados atentado ou de empreendimento, como o art. 352 - evasão mediante violência;
  • Crime de atentado ou de empreendimento: é o crime cuja sua forma tentada é levada ao mesmo status da forma consumada, como no caso da evasão ou tentativa de evasão de preso (tanto a evasão quanto a tentativa são apenadas da mesma forma); votar ou tentar votar em lugar de outrem (tanto o votar quanto o tentar consumam o mesmo crime do Código Eleitoral, art. 309).
b) Teoria objetiva: para essa teoria, irá ocorrer vinculação em razão do iter criminis percorrido pelo agente, isto é, se de alguma forma ele conseguiu alcançar ou vulnerar o bem jurídico tutelado. Nosso CP adotou essa teoria como regra, mas a teoria subjetiva também é levada em consideração nos delitos de atentado ou empreendimento.


2.3) Crimes que Não Admitem Tentativa

a) Unissubsistentes: são aqueles que se configuram em um único ato, isto é, não é possível fracioná-lo (ex.: injúria real);

b) Omissivos próprios: são aqueles cuja omissão está descrita no tipo penal (ex.: omissão de socorro);
  • Esses delitos não admitem tentativa nem coautoria, pois a liberdade de atuar é individual de cada pessoa;
  • Diferentemente, os crimes omissivos impróprios (impuros, espúrios ou comissivos por omissão) admitem tentativa e coautoria, pois na verdade são crimes de ação praticados por meio de omissão (ex.: mãe deixa de alimentar filho para que ele morra, mas alguém o alimenta).
c) Crimes de perigo abstrato: são aqueles em que a lei presume de maneira absoluta que daquela conduta irá nascer perigo (ex.: porte de arma; posse de entorpecente);
  • Para FMB e LFG, os crimes de perigo abstrato são inconstitucionais, pois há uma presunção de culpabilidade, enquanto a CF/88 presume inocência; a culpa deve ser sempre comprovada;
  • Já os crimes de perigo concreto (ex.: incêndio) admitem tentativa, pois o perigo é real.
d) Crimes culposos: o dolo é elemento essencial da tentativa;
  • Diferentemente, a culpa imprópria admite tentativa, que são os casos das descriminantes putativas, em que há culpa no antecedente (ex.: negligência na constatação) e dolo na reação.
e) Crimes preterdolosos: são aqueles em que há dolo no antecedente e culpa no consequente mais grave (ex.: lesão corporal seguida de morte);

f) Contravenções penais - LCP, art. 4º: não é punível a tentativa de contravenção;

g) Participação em suicídio - art. 122: que aliás é o único crime material que não admite tentativa;

h) Crimes habituais: são aqueles em que o agente faz do delito seu meio de vida;

i) Crime continuado - art. 71: por ficção é delito único, considerando-se a modalidade de crime, e questões de tempo, modo, lugar, maneira de execução, dentre outras;

j) Crimes de atentado ou de empreendimento (ex.: art. 352).


2.4) Espécies de Tentativa

a) Tentativa perfeita ou acabada: é aquela em que o agente realiza todos os atos para a execução do delito, mas a consumação não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade;

b) Tentativa imperfeita ou inacabada: é aquela em que o agente não consuma o crime, por não conseguir realizar os atos de execução;

c) Tentativa vermelha ou cruenta: é aquela em que o bem jurídico é alcançado;

d) Tentativa branca ou incruenta: é aquela em que o bem jurídico não é atingido;
  • É possível que as tentativas perfeita ou imperfeita sejam ou branca ou vermelha.
e) Tentativa inidônea ou inadequada: são os casos do crime impossível;

f) Tentativa abandonada: são os casos da desistência voluntária e do arrependimento eficaz.


3) Desistência Voluntária e Arrependimento Eficaz - art. 15

Existe um traço comum entre essas três figuras (tentativa, desistência e arrependimento): a vontade dirigida a um resultado que não chegou a acontecer. Superado esse traço comum, as figuras não se confundem:
  • Na tentativa, é algo alheio à vontade do agente que impede o resultado;
  • Na desistência voluntária, é o próprio agente que vai abandonar a execução do delito, quando ainda havia margem para prosseguir. Na verdade, vai haver uma abstenção por parte do agente no prosseguimento da conduta. A desistência voluntária possui natureza negativa, por conta dessa abstenção. Ela não precisa ser espontânea; basta que seja voluntária;
  • No arrependimento eficaz, não há mais margem alguma, pois o processo de execução está encerrado. O agente vai então atuar para evitar que o resultado sobrevenha, ou para diminuir os seus efeitos. O arrependimento eficaz possui natureza positiva, pois o agente vai atuar para impedir o resultado ou para diminuir os seus efeitos.

3.1) Natureza Jurídica

Há duas correntes que buscaram explicar o que ocorre na aplicação das figuras do art. 15:

a) Corrente minoritária (Nélson Hungria): as figuras do art. 15 são uma causa extralegal (extra: fora do art. 107) de extinção da punibilidade, causa essa não prevista num rol meramente exemplificativo do art. 107;

b) Corrente majoritária (Frederico Marques): as figuras do art. 15 funcionam como uma causa de exclusão da tipicidade, significando que o fato será punido, mas adquirirá uma tipicidade diversa.
  • A doutrina denomina as figuras do art. 15 como "ponte de ouro", pois a lei oferece ao agente a possibilidade de uma recompensa, porque ele não vai responder pelo delito mais grave de forma tentada, mas por outra figura, em virtude da mudança do dolo;
  • Por fim, vale ressaltar que, em virtude de o resultado ocorrer mesmo que o agente tentou evitá-lo, o autor irá responder por esse fato, mas terá a seu favor a incursão de uma atenuante genérica prevista no art. 65, III, b.

4) Arrependimento Posterior - CP, art. 16

Nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, o agente que voluntariamente reparar o dano ou restituir a coisa até o recebimento da denúncia ou queixa, terá sua pena reduzida de 1/3 a 2/3. Trata-se de uma causa obrigatória de diminuição de pena: reconhecida no processo, o Juiz está vinculado à redução.


4.1) Requisitos

a) Que o crime não tenha sido praticado com emprego de violência ou grave ameaça ou à pessoa;

b) Que a reparação do dano ou restituição da coisa sejam integrais;
  • O critério para aferição da quantidade de diminuição da pena será observado a partir da agilidade na restituição do bem, e ainda com relação à forma e o estado em que o bem é restituído, isto é, serão analisados sua conservação e, no caso de coisa fungível, a quantidade;
  • Há divergência sobre a possibilidade de se valorar a restituição parcial da coisa. Ressalte-se, aqui, a previsão do art. 59, que individualiza e valora o comportamento do agente, as circunstâncias do crime, etc.;
  • Se a vítima não quiser receber, pode-se fazer o depósito da coisa.
c) Que a restituição ocorra até o recebimento da peça acusatória.
  • Preenchidos esses três requisitos, o agente terá direito, na última fase da dosimetria, a essa causa de diminuição;
  • Para que seja levada a efeito, essa causa de diminuição de pena, é necessário que o ressarcimento ocorra até o recebimento da inicial, pois se ocorrer após, não há possibilidade de aplicação da causa de diminuição de pena, mas do contrário o agente terá direito a mera atenuante prevista no art. 65, III, b;
  • A consequência dessa distinção é que as atenuantes não possuem força para ultrapassar o limite mínimo da pena prevista pelo legislador (tal como as agravantes não podem ultrapassar as margens penais), consoante o texto da Súmula nº 231-STJ. Já reconhecido o arrependimento posterior, é possível ultrapassar esse limite previsto em lei (igualmente, a causa de aumento de pena pode extrapolar as margens penais);
  • O arrependimento posterior é uma circunstância objetiva, significando que nos crimes praticados em concurso, a reparação feita por um dos agentes aproveita a todos os demais. Aqui também é possível valorar o comportamento de cada agente;
  • O legislador não exigiu que esse arrependimento fosse espontâneo, isto é, pela consciência do agente, bastando que seja voluntário (ex.: o agente atende a pedido do pai).

4.2) Exceções ao Arrependimento Posterior

O arrependimento posterior é a regra, havendo exceções:

a) No peculato culposo - art. 312, §§2º e 3º, a reparação feita antes do trânsito em julgado da decisão condenatória irá extinguir a punibilidade; se esta reparação for feita após o trânsito em julgado, a pena será reduzida em sua metade (quem faz a redução é o Juiz da execução);

b) No JECRIM, o acordo para reparação do dano implica em renúncia ao direito de representação - Lei nº 9.099/95, art. 74, Parágrafo único. Assim, nos delitos de menor potencial ofensivo, não se aplica a previsão do CP, art. 16, por força do princípio da especialidade;

c) A Súmula nº 554-STF afirma que o pagamento do cheque emitido sem provisão de fundos - art. 171, VI - até o recebimento da denúncia vai excluir a justa causa para propositura da ação penal. Essa súmula foi editada antes da reforma de 1984, mas continua sendo aplicada por questões de política criminal.


4.3) Distinções

O arrependimento posterior não se confunde com o arrependimento eficaz, pois neste último se evita a consumação e se afasta a tentativa; já no posterior, a consumação ocorre, mas a pena será reduzida.

No arrependimento eficaz, a natureza é de causa de exclusão da tipicidade (o sujeito alterou o dolo, e pratica ato positivo para impedir o resultado ou seus efeitos); no posterior, a natureza é de causa obrigatória de diminuição de pena.

Assim, não há que se falar em exclusão da tipicidade caso o sujeito realize compra com cheque furtado sem fundos, mas pague o valor devido antes do recebimento da denúncia. Neste caso, o estelionato é o do caput do art. 171. Estará, porém, caracterizado o arrependimento posterior, e a pena será reduzida se estiverem presentes os requisitos.
  • Tentativa: o sujeito atua, mas não conclui o ato em razão de algo externo:
  • Diminuição da pena de 1/3 a 2/3 (extra margens);
  • Desistência: o sujeito atua, mas não concluir em razão de algo interno (seu dolo mudou a tempo):
  • Exclusão da tipicidade com reclassificação do crime (se previsto), ou  atenuante genérica (intra margens) se o resultado ocorreu.
  • Arrependimento: o sujeito atua, conclui o ato, mas passa atuar em sentido contrário para evitar o ato ou suas consequências (seu dolo mudou fora de tempo):
  • Exclusão da tipicidade com reclassificação do crime (se previsto), ou atenuante genérica (intra margens) se o resultado ocorreu.
  • Arrependimento posterior: o sujeito atua sem violência ou grave ameaça, conclui o ato, e busca reparar o prejuízo antes do recebimento da acusação:
  • Diminuição da pena de 1/3 a 2/3 (extra margens).
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