sexta-feira, 29 de agosto de 2014

13 - Crimes contra a Liberdade Sexual - Estupro e Violação Sexual Mediante Fraude

Introdução

Até 2009, este Título da Parte Especial do CP era intitulado "Crimes contra os Costumes". O título indicava que o legislador pretendia proteger os hábitos comuns da sociedade em matéria sexual, a chamada "moralidade média" então vigente. Com o passar do tempo, as mudanças nos costumes obrigaram o legislador a realizar sucessivas alterações na lei. Por exemplo, aboliu-se o crime de sedução e os crimes que só podiam ter como vítima a "mulher honesta".

A Lei nº 12.015/09, que promoveu profundas alterações neste título, objetivou proteger um bem absoluto, que é a dignidade sexual, que é a própria dignidade humana em seu aspecto relativo ao exercício da sexualidade. A lei agora protege a honra e a liberdade do ser humano em matéria sexual, punindo a sua coação e exploração.

1) Estupro - art. 213

O crime consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que se pratique ato libidinoso diverso. 

Este atual crime de estupro é uma fusão do antigo estupro do art. 213 com o antigo atentado violento ao pudor do art. 214, hoje revogado. 

Na lei anterior, estupro era apenas a conjunção carnal (cópula vagínica) obtida mediante violência ou grave ameaça. Atentado violento ao puder era qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal (toques, carícias, coito anal, etc.), obtido mediante violência ou grave ameaça. 

No antigo estupro, a vitima só podia ser mulher; no atentado violento ao pudor, homem ou mulher. O atual estupro, que compreende tanto a conjunção carnal como qualquer ato libidinoso, pode ter por vítima homem ou mulher.


1.1) Sujeito Ativo

Qualquer pessoa, homem ou mulher.

No passado, discutiu-se se o marido poderia ser autor de estupro contra a mulher. Uma corrente sustentava que se a mulher se recusasse à prática sexual e o marido a obtivesse mediante violência ou grave ameaça, não haveria crime, pois incidiria a excludente de antijuridicidade do exercício regular de direito.

Hoje é pacífico que o marido pode ser autor de estupro contra a esposa, e vice-versa. Se um cônjuge injustificadamente se recusa às relações sexuais, isto dá ao outro o direito ao divórcio, mas não ao emprego de violência ou grave ameaça.

O crime de estupro admite coautoria (ex.: um agente segura a vítima ou lhe aponta uma arma, enquanto o outro pratica a conjunção carnal). Se eles se revesarem, praticando ambos violência e atos libidinosos, ou conjunções carnais, cada qual responderá por dois estupros, sendo autor de um crime e coautor de outro.


1.2) Sujeito Passivo

Qualquer pessoa, homem ou mulher, não vulnerável. Se a vítima for vulnerável (nos termos do CP, art. 217-A), o crime será outro: estupro de vulnerável.

Não importa se a vítima do estupro tenha ou não experiência sexual. A pessoa prostituída pode ser vítima desse crime. 


1.3) Tipo Objetivo

O núcleo do tipo (verbo) é constranger, que significa coagir, compelir. Deve haver uma oposição séria da vítima à realização do ato. Não basta uma negativa hesitante, sem demonstração de oposição.

A violência ou grave ameaça objetivam a conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

Discute-se se o chamado "beijo roubado" ou toques furtivos após o agente agarrar a vítima configuram estupro. Prevalece o entendimento de que é desproporcional considerar que essa conduta configura um crime tão grave, de natureza hedionda. Prevalece que se essa conduta for praticada em local público ou acessível ao público, configurará a contravenção de importunação ofensiva ao pudor - LCP, art. 61. Do contrário, a conduta será atípica.

O ato deve ser praticado pela vítima, com a vítima ou sobre a vítima. Ela deve participar materialmente do ato. Quem apenas coage a vítima a assistir a atos libidinosos de terceiros, sem participação neles, não pratica estupro.

Por outro lado, pode haver estupro sem contato físico com o agente (ex.: o agente obriga a vítima a despir-se, masturbar-se, relacionar-se com terceiro, etc.). 

A vítima pode ser coagida a praticar uma conduta ativa (ex.: tocar o agente), ou passiva (ex.: ser tocada pelo agente).

Os meios de execução são a grave ameaça ou a violência, indicativas de que, sem elas, a vítima se oporia ao ato. Esta oposição da vítima, segundo o entendimento dominante, deve perdurar durante todo o ato. Se a partir de determinado momento a vítima aquiescer, dando demonstrações claras de adesão ao ato, não haverá crime. Por outro lado, se a relação se iniciar de forma consensual e a partir de determinado momento a vítima manifestar o desejo inequívoco de interrompe-la, vindo o agente a empregar violência ou grave ameaça para prosseguir, ele responderá por estupro.

Um fato posterior não faz presumir o consentimento da vítima, nem afasta o crime (ex.: a vítima aceita indenização ou flores do estuprador; aceita uma nova conjunção carnal, etc.).

Se a violência, não consentida, ocorrer durante relação sexual consentida ("atentado sádico") não haverá estupro, já que a violência não foi empregada como meio para obter a conjunção carnal. Neste caso, o agente responderá por lesão corporal. 


1.4) Consumação

Uma corrente sustenta que o crime se consuma com a prática do primeiro ato libidinoso, ainda que o agente pretendesse chegar à conjunção carnal, tendo sido impedido de prosseguir. Para essa corrente, só haverá tentativa de estupro se o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, não chegar a praticar nenhum ato libidinoso (ex.: aponta a arma para a vítima, manifesta a intenção de estupra-la e a leva para um lugar afastado, onde é surpreendido e preso antes de qualquer ato libidinoso). 

Uma segunda corrente, adotada pelo STJ, sustenta que se o agente pretendia praticar a conjunção carnal, e chegou a praticar atos libidinosos que constituem mera preparação natural (ex.: despir a vítima, beija-la, toca-la, etc.), sendo impedido de prosseguir, haverá tentativa. No entanto, se ele chegar a praticar atos libidinosos que não são uma mera preparação natural para a conjunção carnal (ex.: coito anal, masturbação, felação - sexo oral), ele responderá por estupro consumado, ainda que sua intenção também fosse a de praticar a conjunção carnal, tendo sido impedido de prosseguir.


1.5) Tipo Subjetivo

É o dolo. Discute-se se o dolo é genérico ou específico. Uma corrente minoritária sustenta que o dolo é específico, ou seja, para que haja crime de estupro não basta que a conduta tenha natureza libidinosa, sendo necessário também que a intenção do agente também seja libidinosa, de satisfazer a própria lascívia (ex.: o agente encontra uma inimiga na rua e com a intenção exclusiva de humilha-la, arranca suas vestes, passa a mão em seu corpo, etc.). Para essa corrente, ele não responderia por estupro, pois não teve a intenção de satisfazer a própria lascívia. Ele responderia por injúria real.

A corrente majoritária sustenta que o dolo é genérico, pois não importa qual a finalidade do agente. Para essa corrente, haverá estupro se o ato tiver natureza libidinosa, mesmo que a intenção do agente não seja a de obter satisfação sexual. Para essa corrente, no exemplo citado, o agente responde por estupro.


1.6) Estupro Qualificado

O estupro pode ser qualificado pelo resultado, ou pela idade da vítima.

a) Pelo resultado

Ocorre quando a vítima, em razão da conduta, sofre lesão corporal grave (art. 213, §1º, 1ª parte) ou morte (2ª parte). O resultado qualificador lesão grave ou morte é consequência da conduta, e não necessariamente da violência, podendo ocorrer essa hipótese mesmo quando o estupro é praticado apenas mediante grave ameaça (ex.: o agente aponta a arma para a vítima e inicia o estupro, vindo esta a sofrer ataque cardíaco e a morrer; fugindo do estuprador que a ameaçou, a vítima cai e se fere gravemente).

Lesões corporais graves são aquelas definidas no art. 129, §§1º e 2º. O estupro absorve as vias de fato e as lesões leves.

O resultado qualificador lesão grave ou morte deve atingir a vítima do estupro. Se atingir terceiro, haverá concurso de crimes (ex.: durante a prática do estupro, o agente é surpreendido por uma pessoa e dispara contra ela, provocando neste terceiro lesão grave ou morte. Nessa hipótese, ele responderá por estupro simples em concurso material com lesão grave ou homicídio).

Discute-se se o estupro qualificado pelo resultado é ou não necessariamente preterdoloso. A primeira corrente, minoritária, sustenta que este crime só admite a forma preterdolosa, em que o agente tem dolo apenas de estuprar, provocando o resultado qualificador por culpa (ex.: o agente não quer nem assume o risco de matar a vítima, mas imprudentemente se excede na violência e provoca sua morte). Para esta corrente, se houver dolo direto ou eventual em relação ao resultado lesão grave ou morte, não haverá estupro qualificado, mas sim estupro simples em concurso formal com lesão grave ou homicídio.

A corrente majoritária sustenta que, tal como ocorre no latrocínio, haverá estupro qualificado tanto na hipótese em que o resultado qualificador é produzido a título de culpa como de dolo. Cabe ao Juiz, na dosimetria da pena, distinguir essas situações.

Surge dúvida na hipótese em que a prática sexual é meramente tentada, mas o resultado qualificador é consumado (ex.: a vítima reage à tentativa de estupro e o agente, antes de qualquer ato libidinoso, a mata). Prevalece o entendimento de que esta hipótese deve ter a mesma solução que a Súmula 610 do STF deu ao latrocínio, em que a subtração é tentada e a morte é consumada. 
SÚMULA Nº 610 - STF: HÁ CRIME DE LATROCÍNIO, QUANDO O HOMICÍDIO SE CONSUMA, AINDA QUE NÃO REALIZE O AGENTE A SUBTRAÇÃO DE BENS DA VÍTIMA.
Assim, o agente responderá por estupro qualificado consumado: tendo ele atingido o bem da vida ou da integridade corporal da vítima de forma tão grave, torna-se indiferente que ele não tenha conseguido atingir a sua dignidade sexual.


b) Pela idade da vítima

É aquele em que a vítima é "maior de 14 anos" ou "menor de 18 anos". Se a vítima for menor de 14 anos, o crime será o do art. 217-A, estupro de vulnerável. 

Discute-se na doutrina a hipótese do estupro praticado no dia do aniversário de 14 anos da vítima. A corrente majoritária sustenta que, nessa hipótese, haverá estupro simples. Não haverá estupro de vulnerável porque a vítima não é mais "menor de 14 anos". Não haverá estupro qualificado, pois a vítima ainda não é "maior de 14 anos". 


1.7) Crime Hediondo

O estupro, tanto na forma simples como nas formas qualificadas, é crime hediondo (Lei nº 8.072/90, art. 1º, V).


1.8) Concurso de Crimes

Na lei anterior, quando o agente constrangesse a vítima à conjunção carnal e também, ainda que num mesmo contexto, a um ato libidinoso diverso da conjunção carnal, que não constituísse uma mera preparação para esta (coito anal, felação, etc.), ele respondia por dois crimes: estupro, em razão da conjunção carnal, e atentado violento ao pudor, em razão do outro ato libidinoso. Entendia o STF que nessa hipótese havia concurso material de crimes (art. 69). Não poderia haver concurso formal, pois as condutas são distintas. Também não havia crime continuado, pois os crimes não eram da mesma espécie.

Com a lei nova, que unificou num só tipo as duas condutas, surgiram duas correntes para a hipótese em que o agente pratique contra a mesma vítima, e num mesmo contexto, conjunção carnal e também o ato libidinoso diverso.
  • Primeira corrente: o novo tipo do art. 213 é misto cumulativo (prevê mais de uma conduta, sendo que se o mesmo agente praticar mais de uma delas contra a mesma vítima e num mesmo contexto, ele responderá pro mais de um crime). Para esta corrente, na hipótese dada, o agente deve responder por dois crimes de estupro. Como as duas condutas estão hoje previstas num mesmo tipo penal, os defensores desta corrente, em sua maioria, admitem que há entre estes vários crimes continuidade delitiva. Esta posição foi adotada inicialmente pela 5ª Turma do STJ;
  • Segunda corrente: o novo tipo é misto alternativo (prevê mais de uma conduta, sendo que se o agente praticar mais de uma delas, num mesmo contexto, e contra a mesma vítima, ele responderá por um só crime, cabendo ao Juiz na dosimetria da pena, levar em consideração esta multiplicidade de condutas). Para esta corrente, na hipótese dada, o agente responde por apenas um crime de estupro. Esta foi a posição adotada desde o princípio pela 6ª Turma do STJ.
  • Atualmente, o STJ unificou seu entendimento no sentido de que o novo tipo é misto alternativo;
  • O STF ainda não se pronunciou a respeito. No entanto, julgando alguns casos ocorridos sob a lei anterior, já havia decidido sob a lei nova que esta é mais benéfica, não por tornar a conduta um só crime, mas por permitir o reconhecimento da continuidade delitiva entre as antigas condutas de estupro e atentado violento ao pudor (HC nº 99.544, 101.116 e 94.636). Essas decisões implicariam na adoção da segunda corrente.

2) Violação Sexual Mediante Fraude - art. 215

Este crime é chamado de "estelionato sexual", pois em sua forma mais comum, consiste na obtenção de uma vantagem sexual sem violência nem grave ameaça, mas sim mediante emprego de fraude.


2.1) Sujeito Ativo

Qualquer pessoa, homem ou mulher. 


2.2) Sujeito Passivo

Qualquer pessoa, homem ou mulher, desde que não vulnerável. Se a vítima for vulnerável, o crime será estupro de vulnerável - art. 217-A. Não importa se a vítima tenha ou não experiência sexual. Até mesmo a pessoa prostituída pode ser vítima desse crime (ex.: já pretendendo não pagá-la, o agente contrata uma prostituta, e foge ao fim do ato sexual).


2.3) Tipo Objetivo

As condutas são ter conjunção carnal, ou praticar outro ato libidinoso com alguém. Diferentemente do estupro, aqui a lei não fala "praticar ou permitir que com ele se pratique". 

Por isso, uma corrente sustenta que só haverá crime se o agente tiver uma conduta ativa. Para esta corrente, se ele mantiver apenas uma atitude passiva (ex.: ele é tocado pela vítima, ou a vítima pratica o ato em si mesma), a conduta será atípica, pois nessa hipótese ele não teve conjunção carnal nem praticou outro ato libidinoso.

Os meios de execução não são nem a violência nem a grave a ameaça. Eles são:

a) Fraude: é o ardil, o engodo, que leva a vítima a se enganar e a consentir na realização do ato. Esse erro da vítima pode ter por objeto uma destas duas coisas:
  • A identidade do agente: a vítima consente em relacionar-se com o agente supondo que ele é outra pessoa (ex.: relação sexual no escuro, com gêmeo, etc.);
  • A legitimidade do ato: a vítima equivocadamente acredita que o ato é legítimo (ex.: médico finge examinar a vítima para tocá-la libidinosamente; curandeiro faz a vítima acreditar que o contato sexual com ele tem efeito curativo; o agente simula casamento com a vítima, etc.);
A jurisprudência tem entendido que o erro da vítima sobre o estado civil ou a condição financeira do agente não bastam para configurar este crime.

b) Outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: a vítima sofre uma redução, mas não uma anulação da capacidade de compreender o ato ao qual ela dá o seu consentimento (ex.: vítima em situação de embriaguez incompleta, ou em estado de choque, ou com muito sono, etc.);
  • Se a vítima já não tiver nenhuma capacidade de compreender o ato, ela será vulnerável, e o crime será o do art. 217-A (ex.: embriaguez completa, adormecida, desmaiada, anestesiada, etc.).
Se, durante um ato já iniciado, a vítima se aperceber da situação e manifestar o desejo de interromper o ato, vindo então o agente a empregar violência ou grave ameaça para prosseguir, ele responderá por estupro, o qual absorve este crime do art. 215.

Por outro lado, se a vítima, apercebendo-se da situação, consentir inequivocamente na continuação do ato, a conduta do agente será atípica.


2.4) Consumação

Aplica-se o que já foi estudado no crime de estupro.


2.5) Forma Qualificada

Ocorre quando o agente, além do contato sexual, também pretende obter vantagem econômica (ex.: mulher pretende engravidar de um milionário para obter pensão). Neste caso, aplica-se-lhe também a pena de multa.


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